I. A chuva de verão
No dia 24 de dezembro de 2022, eu, às de costume, estava na casa de meu cunhado na cidade de Araraquara/SP. A cidade é conhecida pelo clima quente, tanto que seu nome significa, em tupi-guarani, “Morada do Sol”. Corre à boca pequena, inclusive, que trecho do livro “Macunaíma” fora escrito na cidade, por um Mário de Andrade metido dentro de um banheiro, tamanho o calor que o assolava.
Na véspera de Natal, dizia eu, por volta das 15 horas, estava com meu cunhado em vias de buscar mesas e cadeiras para a ceia quando precipitou-se uma chuva muito forte. Os pingos que rasgavam o ar golpeavam fortemente a superfície. Estávamos diante do que é chamado chuva convectiva, ou simplesmente chuva de verão.
Presos pela pancada de chuva na cômoda garagem da casa de meu cunhado, ele e eu não fazíamos ideia de que, alguns dias depois, a cidade sofreria com tal fenômeno natural, que inclusive culminou na morte de toda uma família devido ao rompimento de uma ponte, em uma movimentada rua da cidade.
Enquanto lá estávamos, meu cunhado, que é piloto aéreo profissional, explicou-me sobre o fenômeno vulgarmente chamado de chuva de verão. Disse-me ele que tudo começa com um sol muito quente, capaz de aquecer bastante o ar. Como o ar quente é mais denso que o ar menos quente, ele tende a subir, formando o que é chamado de térmica ascendente. Essa massa de ar quente que sobe é barrada pelas nuvens, que funcionam como um teto. Como o ar quente não encontra saída, e o sol continua produzindo mais ar quente ascendente, a massa de ar debaixo das nuvens tende a levá-las para cima, até que, em dado momento, em algum ponto mais fraco das nuvens, ocorre um rompimento. Pelo furo nas nuvens começa a passar o ar quente, criando-se uma corrente de ar ascendente em alta velocidade. Como o ar quente está passando rapidamente pelo furo nas nuvens, a pressão que empurrava as nuvens para baixo é aliviada, e as nuvens voltam a descer. Forma-se uma figura convexa de corrente do ar: todo o ar quente debaixo das nuvens tende a se dirigir para a fenda.
Dado o fortíssimo impulso com que sobe o ar quente, que pode atingir até 200 Km/h, esse ar, carregado de umidade, sobe a grandes altitudes, onde a temperatura do ar é, inarredavelmente, inferior a zero grau (pode chegar a -50 graus celsius). Assim, a umidade que o ar outrora quente carrega transforma-se em verdadeiras bolas de gelo. Quando isso acontece, o gelo, pesado que é, começa a cair. Todavia, por estar caindo pelo mesmo lugar onde a massa de ar quente está subindo, ele derrete, transformando-se em um grande pingo d’água. Não raro, o grânulo de gelo não derrete completamente, e atinge a superfície ainda na forma congelada, situação em que é chamado de granizo.
Ao ouvir atentamente essa explicação de meu cunhado, não pude me furtar de enxergar a semelhança com a teoria substancial do Direito, que considera a descrição contida na Torá acerca da Escada de Jacó para a compreensão da manifestação do Justo e da Justiça no mundo dos fenômenos.
II. A Escada de Jacó
Após passar por seu irmão Esaú, enganando, assim, seu pai Isaque, a fim de que este lhe desse a bênção patriarcal no lugar de seu irmão, Jacó fugiu sentido Padã-Harã, onde encontraria refúgio junto de seu tio, de nome Labão. Em determinado local, entre Berseba e Harã, Jacó parou para passar a noite. Conta o primeiro livro da Torá que Jacó colocou pedras locais em sua cabeceira e lá adormeceu.
Durante seu sono, Jacó viu uma grande escada, que se apoiava na Terra e tocava o céu. Pela escada, anjos de Deus subiam e desciam. Segundo uma Parashá judaica, Jacó havia visto uma espécie de troca de guarda entre os anjos, sendo que aqueles que desciam rendiam os que na Terra se encontravam, para que pudessem subir.
É certo que todo e qualquer trabalho é naturalmente desgastante, e que todos os trabalhadores demandam de certo tempo de descanso para recomporem suas energias. Se aplicarmos essa lógica à angeologia (se é que ela se aplica aos anjos - de fato não o sei), aqueles seres celestiais que se encontravam há algum tempo no mundo dos fenômenos ascendiam para, em contato com o que está no alto, recuperarem-se e volverem à labuta.
Após receber um pronunciamento divino acerca da visão, Jacó declarou: “Quão terrível é este lugar! Este não é outro lugar senão a casa de Deus, e esta é a porta dos céus” (Gn, 28:17[1]).
III. A cosmovisão jurídica da teoria substancial do Direito
Desde que me deparei com um sistema jurídico completamente carcomido pelo que há de mais funesto da modernidade, debrucei-me nos estudos fenomenológicos, que me remeteram ao realismo clássico. Este, por seu turno, remeteu-me à sua complementação, que é a teologia.
Dentro dessa compreensão, a teoria substancial do Direito afirma que a Justiça terrena não é a mera vontade de quem detém o poder de julgamento (ideia resultante das filosofias modernas). Tampouco se trata de um ideal deôntico, de carga moral. A Justiça terrena é como o granizo que cai do céu em uma chuva de verão; a Justiça é como o anjo que desce da Escada de Jacó para aqui, no mundo dos fenômenos, realizar as obras divinas.
Para tal teoria, uma das características do Ser Primeiro é o Ser Justo. É Ser porque Ele apenas é. Não há, no nível divino, qualquer mácula potencial. O que há é puro ato. Esta magnética do Ser Justo em sua completude, quando descende do nível divino para o nível metafísico, é conspurcada por certa carga de potência, transformando-se em Justiça. É dizer que, enquanto Ser Justo, não há sequer sombra de dualidade, ao passo que, ao se transmutar em Justiça, já imerso na dualidade da criação, existe a dualidade, e com ela a alteridade, de modo que aquilo que era uno torna-se plural. É como a bola de gelo da chuva convectiva que, no meio do caminho, já não é totalmente gelo, senão parte gelo, parte água. Mas a tendência ao Justo de que goza a Justiça é capaz de determinar o dar a cada um o que é seu.
Acontece que, assim como a bola de gelo na metade do caminho ainda não atingiu a superfície, a Justiça ainda não atingiu o mundo dos fenômenos. E, decaindo mais, ou seja, revolvendo-se ainda mais com as densas tonalidades da potência, a Justiça torna-se o Caso Concreto. Assim como a gota d’água que toca a superfície na chuva de verão tem, em sua essência, a natureza da bola de gelo que fôra antes de se precipitar a cair, o Caso Concreto tem, em sua essência, a natureza da Justiça, e, por conseguinte, a própria natureza do Justo.
Essa é, em linhas generalíssimas, a cosmovisão jurídica da teoria substancial do Direito.
IV. A ação avárica da substanciação jurídica
O termo ‘avárico’, que acabo de cunhar, relaciona-se à etimologia da palavra ‘hebreu’. Derivado do verbo ‘avar’, que significa, em hebraico, ultrapassar, ir além, cunho tal termo para denominar algo que ‘vai além’ da mera superficialidade; algo que, a partir do mundo dos fenômenos, é capaz de ascender à metafísica, e da metafísica à transmetafísica, e da transmetafísica – por que não? – ao próprio divino.
Assim como a Escada de Jacó faz subir e descer anjos; assim como a chuva de verão faz subir e descer a umidade, a substanciação jurídica faz, a partir do caso concreto, subir e descer a juridicidade.
Vimos, conforme a explicação de meu cunhado, que a umidade do ar é transportada de baixo para cima através do calor do sol. Dado o calor, que é desconfortável, as partículas se movimentam, e acabam subindo. Elas sobem até se resfriarem, e então descem. Vimos, também, de acordo com certa Parashá judaica, somando-se a ela certa interpretação pessoal, que a Escada de Jacó representou a ascensão dos anjos já estafados e a vinda dos anjos arrefecidos pela energia divinal.
Enxergamos, na marcha histórica, cujo primeiro registro é de Sófocles em sua ‘Antígona’, que toda vez que o autoritarismo ganha campo no Direito do mundo físico, o Direito Natural tende a ressurgir e a ganhar força. O autoritarismo funciona como verdadeiro sol a aquecer as partículas jurídicas a níveis insuportáveis, fazendo-as ascender à Justiça. Na continuidade do aquecimento, as partículas ascendem ao Justo, e então caem como bolas de gelo, chegando de volta à superfície não mais como ar, mas sim como água, ou, em alguns casos, como granizo. A chuva que deriva do Direito Natural arrefece a superfície; os anjos que vêm do alto têm seu ânimo renovado para cumprir os planos divinos no eixo terrestre.
Eis, então, a (re)ação avárica da substanciação jurídica: a certeza de que a sua inaplicabilidade redundará em puro autoritarismo faz o jurista partir do caso concreto, pois é ciente de que este guarda em si a natureza da Justiça, e, por conseguinte, do Justo (tal qual a gota de chuva, que guarda em si a natureza da bola de gelo que se formou no alto do céu). Ius in causa positum est – a Justiça (e o Justo) estão contidos na própria causa. Mas quem consegue ver? Só consegue enxergar quem trilhou racionalmente o Caminho da Justiça e do Justo; só consegue enxergar quem se questionou corretamente acerca da real natureza jurídica das coisas. Somente o verdadeiro jurista consegue enxergar para além da superficialidade.
Consciente do tanto e quanto que expus, permito-me lamuriar:
- Ai de nós, à mercê de “juristas” que não enxergam nada além de si mesmos!
[1] Bíblia, versão Almeida Revista e Corrigida, 2009.
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