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Sin pan para el pobre no hay paz para el rico



Antes de sair do apartamento, olhei para a janela e vi, do outro lado da linha férrea, que corta toda a Avenida del Libertador, aquilo que os portenhos chamam de villa. Tal qual o Brasil, Buenos Aires também estampa a sua discrepância social, que se formaliza nas construções: de um lado dos trilhos de trem o movimentado, porém seguro e arborizado Bairro da Recoleta; do outro, o Barrio Padre Mugica, antigamente chamado de 'Villa 31', com casas sobrepostas, muitas delas não pintadas, sem nenhum verde aparente – é evidente que se trata do que se passou a chamar, no Brasil, de comunidade.


Quedei-me pensando: o que separa essas duas realidades, para além da linha do trem? Não tive a oportunidade de conversar com alguém de lá, e, se o fiz, não o sei, mas não tenho dúvidas de que se trata de um povo que teve menos acesso à cultura; posso chegar a apostar que se trata de um povo que tem que labutar para sobreviver, e que não há ali muita coisa para além da sobrevivência. Como eu o sei? Bem, essa discrepância é a marca registrada dos países latino-americanos, que até hoje sofrem os efeitos da colonização.


Ao fim e ao cabo, tudo se resume em uma coisa: bens. Se alguém possui uma quantidade considerável de bens valiosos (a exemplo do dinheiro, do imóvel etc.), esse alguém tem maior acesso ao que a sociedade oferece de melhor. Lado contrário, quem não tem uma monta considerável de bens hodiernamente valorados, possui quase nenhum ou nenhum acesso aos produtos e serviços da sociedade moderna.


Mas de onde vêm esses bens? Aliás, o que é um bem? Quando falamos de bens, estamos falando invariavelmente de propriedade, que é o vínculo, primeiro natural, e, depois, jurídico, criado entre o ser humano e a coisa. Em uma de minhas obras – se não me engano na Introdução à Teoria Substancial do Direito -, eu realizo uma análise filosófica acerca da ontologia da potestas dominus, ou seja, da capacidade de o ser humano apropriar-se das coisas. Mas hoje, excepcionalmente, eu gostaria de divagar sobre um momento depois, ou seja, sobre o momento em que a propriedade se consolida.


O homem, em seu estado natural, sente, em dado momento, fome. Caçador-coletor que é, ele sai à procura de alimento. Imaginemos que, nesse contexto, um outro homem, que se encontra em outro lugar, porém próximo, também sente fome, e, igualmente ao outro, saia em busca de alimento. Imaginemos, também, para fins instrucionais, uma situação inusitada: entre os dois homens há uma macieira, e nela existe uma única maçã. O primeiro homem chega primeiro à árvore, e, depois de nela trepar, alcança o fruto desejado.


Neste momento, o segundo homem também chega ao pé da árvore. O que ele vê? Ele vê ali, trepado na árvore, outro homem, segurando o único fruto que aquela árvore oferecia. O que seria uma situação justa? O segundo homem poderia entrar em luta corporal contra o primeiro, a fim de lhe arrancar a fruta das mãos?


A verdade é que, por mais racionais que sejamos, ou seja, por maior que seja a nossa capacidade de antevermos situações, estamos, todos, jogados a certa carga de álea, de sorte. Estamos, todos, inseridos no mundo dos fenômenos: um mundo dado à contingência, e, portanto, abandonados, de certa forma, à sorte de nossos destinos.


O homem que chegou primeiro à árvore empreendeu um esforço rumo ao seu objetivo: ele trepou na árvore para dela arrancar o fruto que lhe saciaria, ao menos parcialmente, a fome. É correto dizer que ele criou um vínculo natural entre o fruto e si. E, dada a racionalidade humana, que tende à paz social, é certo também afirmar que o segundo homem e todos os outros homens deveriam, ao menos em tese, respeitar esse vínculo.

O que temos neste exemplo? Temos a questão da sorte do primeiro homem, que localizou a árvore (e, consequentemente, seu único fruto) antes do segundo; temos o vínculo natural, que se estabeleceu entre o homem e a coisa no momento em que ele trepou na árvore e tomou para si o fruto; e temos, por fim, o vínculo jurídico, que é a relação entre essa situação natural homem e coisa (res) sendo respeitada pelos outros seres humanos.


Se expandirmos essa lógica para todos os bens móveis e imóveis do mundo, teremos que aquele que teve a sorte de chegar antes a tais bens, há de ter garantida a sua propriedade. A lógica parece caminhar bem. Todavia, será que ela realmente funciona em sua integralidade? Vejamos.


Imaginemos que o segundo homem, em que pese consciente de que é preciso respeitar o vínculo natural estabelecido entre o primeiro homem e a fruta, está literalmente morrendo de fome. O que ele faria? Aceitaria a inevitabilidade de seu destino e morreria enquanto o primeiro homem comesse a maçã? Parece-nos óbvio que, numa situação limítrofe dessa, o segundo homem sentir-se-ia compelido a lutar pelo alimento, e é certo que nenhum de nós deixaria de lhe legitimar a luta pela sua própria sobrevivência. E assim entendemos porque sabemos de nossas limitações animais, de modo que se nos assemelha crível que uma efetiva juridicidade demanda uma condição mínima, básica, de sobrevivência de todos.


Depois da aprazível caminhada de cerca de treze minutos entre a minha habitação e a Faculdade, a Professora Natalia Stringini, que com maestria nos mostrava a manifestação jurídica nas artes, apresentou-nos a figura do início do artículo: uma pichação, em algum prédio público argentino, com os seguintes dizeres: ‘sin pan para el pobre no hay paz para el rico’.


Coincidências existem?

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