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O Direito Tri-Vetorial



No final do ano passado, meu filho se acidentou na última aula de Ginástica Artística do clube que frequentamos. Já no final da aula (na última atividade, para ser exato), ele, ao efetuar o movimento chamado rodante (mais conhecido como ‘estrela’), escorregou seu braço direito no tatame e, com o peso do próprio corpo, fraturou a ulna e o rádio, os dois ossos do antebraço. A fratura foi horrível, quase uma fratura exposta.


Fomos imediatamente para o hospital, onde o habilidoso Dr. Hoffmann e seu auxiliar realizaram o procedimento chamado de “redução”, que é o retorno dos ossos no lugar. Depois de menos de dois meses, o meu pequeno retirou o gesso.


Durante o processo de recuperação com o gesso, não raro meu filho dizia: “Pai! Estou sentindo! Estou sentindo! Estou sentindo uma energia passando pelos ossos! Está colando!”. Era a formação do calo ósseo acontecendo, em uma ação corporal que o Dr. Hoffmann teve a sensibilidade de descrever como sendo “Deus agindo”.


O mais surpreendente, contudo, foi no dia da retirada do gesso. Realizada a radiografia, nitidamente percebíamos que a ulna estava (e ainda está) como que fora do lugar. Remanesceu, do acidente, uma ponta dela em descompasso com a continuidade óssea. Obviamente que o médico fora questionado, e ele então explicou que o importante era a existência do calo ósseo, e que o corpo do meu filho se encarregaria de retificar as arestas remanescentes.


Como assim?! Foi então que eu descobri que, nesses casos, entram em ação os osteoclastos, células móveis e gigantes responsáveis pela remodelação óssea. Enquanto os osteoblastos sintetizam novos componentes orgânicos na matriz óssea, os osteoclastos a digerem.


O processo é complexo para uma mente não afeta à Biologia, mas, sob a perspectiva filosófica, o que importa é que o corpo é capaz de se reestruturar conforme a sua natureza. E, se somos capazes de, ao observarmos uma mesa, um computador ou qualquer outro artefato, enxergarmos por detrás da peça uma inteligência que o antecede, ou seja, uma ideia que fora pensada e, depois disso, traduzida, a partir da modificação de elementos materiais, em uma forma física, como não enxergar, por detrás da perfeição do corpo humano, uma perfeita inteligência que o antecede?


Sob essa perspectiva, olho para o Universo e sou capaz de enxergar essa inteligência por todos os lados; essa inteligência que as religiões de matriz judaica chamam de D’us, e que o zen-budismo chama de Dharma.

Flores na Primavera

Cucos no Verão

A Lua no Outono

Neve gelada no Inverno

(Eihen Dogen, fundador da escola Soto Zen Shu)


As leis da natureza estão, a todo instante, em todos os lugares: as flores desabrocham na Primavera, os cucos surgem no Verão, a Lua é mais evidente no outono, e, nos países próximos aos limites externos dos hemisférios, há neve no Inverno. De igual modo, o corpo animal tende a se reestruturar de acordo com a sua forma original, assim como o corpo vegetal tende a crescer em direção ao Sol. As descrições vão ao infinito.

Estamos falando de leis chamadas cósmicas, pois, segundo a filosofia grega, essa ordem espontânea e natural é chamada de Kosmos. Estamos, todos, sob a égide dessa legislação natural; uma legislação que põe termo ao caos inerente à existência. Sob a perspectiva da teoria substancial, estamos falando de uma inteligência finalística (telos) que organiza a matéria (causa material) em um sistema complexo (causa formal).


Por ser o humano um animal político, ou seja, um animal que tem como natureza imanente viver em sociedade, surge a natural necessidade de estabelecer ordem social. Em outras palavras, as normas sociais surgem para ordenar, em um sistema complexo, o caos existencial gerado pelo individualismo, ou seja, pela existência de diversos indivíduos com vontades singulares e muitas vezes díspares de seus pares.


Essa é a origem do poder legiferante; da capacidade humana de, imitando a inteligência natural, da qual o próprio homo sapiens sapiens é resultado, ordenar a sociedade. Segundo Hayek, essas normas sociais não são naturais, pois não tratam do Kosmos, mas sim daquilo que os gregos chamaram de Taxis.


A ordenação natural do caos, chamada Kosmos, é imanente, intrínseca, interna, espontânea, natural. Já a ordenação social do caos existencial humano, chamada Taxis, é transcendente, extrínseca, externa, induzida, artificial. Com efeito, o termo taxis significa o reflexo de um corpo a partir de uma fonte externa de estímulo.


Quando um ser humano, tomado pela concupiscência, pratica um ato de cunho sexual, seja ele masturbatório (infecundo), seja ele relacional (fecundo ou infecundo), ele está agindo sob um efeito cuja natureza é imanente, interna, intrínseca. Já quando esse mesmo ser humano, tomado pela mesma excitação sexual, deixa de agarrar uma pessoa que o apraz sexualmente, ele está deixando de agir devido a estar ele sob um efeito cuja natureza é externa, não natural, imposta, determinada pela alteridade, ou seja, pela existência de terceiros: a natureza pode ser do próprio ser humano em relação ao outro, ou então uma lei que o proíbe de agarrar pessoas à força.


Neste sentido primordial, conseguimos detectar a existência de duas espécies de normas: aquelas relacionadas ao Kosmos e aquelas relacionadas ao Taxis. Quando o ser humano legisla acerca do Kosmos, ele produz um tipo de norma chamada de Nomos. O termo vem do grego clássico νομός (nómos), e refere-se à lei, usos e costumes relacionados à origem. Na mitologia grega, Nomos é o daemon das leis, estatutos e normas. É marido de Eusébia, a deusa da piedade, e pai de Dice (Diké), a deusa da Justiça. Nomos é, portanto, um dos aspectos de Zeus, significando que se trata de uma lei externa e superior aos homens; uma lei à qual tudo e todos estão subordinados, independentemente de suas vontades pessoais.


O Kosmos, compreendido como a ordem demiúrgica do mundo, e o Nomos, referindo-se à lei ou ao costume que regula o comportamento humano e estabelece a ordem social no tocante ao Kosmos, possuem uma relação de complementariedade, na medida em que a ordem estabelecida pelos homens através da Nomos é um meio de preservar a ordem natural, ou seja, o Kosmos.


Um exemplo de Nomos é a criminalização do homicídio: ao criar ferramentas político-jurídicas para evitar que um ser humano mate o outro, o legislador está preservando uma ordem natural, que é a de que o ser humano nasce, cresce, adoece e morre, tendo a vida um tempo seu, que lhe é natural, e, por consequência, tendo a morte um determinado momento para ocorrer naturalmente.


Já quando o ser humano legisla acerca do Taxis, ele produz um tipo de norma chamada de Thesis. O termo latino deriva do verbo grego ‘thitenai’, que significa ‘colocar, estabelecer’. Isso implica dizer que a Thesis é algo posto, e, portanto, colocado à prova, passível de argumentação – ao contrário de Nomos, que, por ser natural, é inquestionável.


Com efeito, seria absurda uma lei que proibisse chuvas fortes, ou então que proibisse as pessoas de morrer, pois tanto o fenômeno chuva quanto o fenômeno morte são naturais, sendo a morte, ainda, intrínseca e inevitável ao ser humano. E, por mais absurdo que possa parecer, uma lei de 2005, da cidade de Biritiba-Mirim/SP, proibia os seus moradores de morrer. Obviamente que se tratou de uma lei inócua, ao menos sob o ponto de vista de geração de obrigatoriedade.


Por seu turno, criar leis de trânsito para que as pessoas possam se deslocar de maneira segura por entre as vias de uma cidade é algo não só possível como desejável.


A Thesis, então, pode ser vista como uma proposição sobre a ordem estabelecida (Taxis), que é colocada à prova ou argumentada como verdadeira. Assim, a Thesis pode ser usada para descrever uma ação afirmativa sobre a estrutura de uma sociedade.


Estamos tratando das origens do que é chamado de direito natural, e da diferença entre aquilo que independe completamente da vontade humana - da natureza que obriga o ser humano -, com aquilo que deriva da vontade humana e é passível de ser adotado. Em linhas gerais, estamos deixando clara a diferença entre esse direito natural (Kosmos --> Nomos) e o direito posto pelo próprio ser humano (Taxis -->Thesis).


A própria sociedade é uma Nomos, na medida em que o ser humano, segundo nos ensinou Aristóteles, é um animal político. E dessa sociedade, natural, surge a necessidade de uma organização artificial, que se dá através de leis não pertencentes ao direito natural.

E aqui chegamos à conclusão necessária: essas leis sociais, chamadas de Thesis, só têm eficácia se não contrariarem as leis naturais. E, para além, as leis artificiais só são capazes de subsistir se o impulso humano for inferior à razão humana.


O que você me pede eu não posso fazer

Assim você me perde e eu perco você

Como um barco perde o rumo

Como uma árvore no outono perde a cor

(...)

(Piano Bar, Engenheiros do Hawaii)


Meus dois cães, um macho e uma fêmea, são irmãos gêmeos. Não raro, vejo-os brincando de pega-pega, e, repentinamente, começam a se roçar sexualmente. Um barulho da rua os faz parar o ato e correr para averiguar o que está acontecendo. São animais brutos, carentes de racionalidade.


O ser humano é diferente, pois possui a razão, essa centelha divina que nos dá um caráter de transcendência do bruto. Todavia, a presença de racionalidade não lhe retira a sua condição natural de animal. O que o impede de agir como meus dois cães são, basicamente, duas coisas: a primeira, como já dito, é a racionalidade, e a segunda é a existência da Thesis, ou seja, de uma lei ou costume humano apto a reprimir seus instintos naturais.


Concluímos facilmente, e.g., que a condição para que a legislação que tipifica o crime de estupro tenha eficácia real é a ascensão da racionalidade dos indivíduos que estão sob a égide de tal lei. É necessário, ainda, que tal ascensão transcenda a esfera animal, bestial, concupiscente de tais indivíduos.


O desejo sexual é imanente, intrínseco aos animais sexuados. Trata-se do instinto de perpetuação da espécie, um ímpeto natural e inevitável. Todavia, a racionalidade proporciona ao ser humano alguns exercícios intelectivos que lhes são sui generis. Dentre eles, merecem destaque (i) a capacidade de compreender a relação entre causa e consequência; (ii) a capacidade de empatia, que é a capacidade de se colocar no lugar do outro; e (iii) a capacidade de se enxergar como parte de um conjunto de seres humanos, e, assim, buscar o bem comum.


É com esses três vetores que o Direito trabalha. Ou melhor, sem esses três vetores não há Direito. Em um primeiro momento, o Direito conta com um desenvolvimento mínimo das virtudes, sem as quais o ser humano não é capaz de ser empático, de se colocar no lugar do outro e, assim, de compreender que determinados atos atentam contra o justo. É somente quando esse primeiro vetor falha que o Direito apela para o segundo, ou seja, para compreensão da relação de causalidade. É dizer que, antevendo eventual ausência de empatia por algum ou alguns membros da sociedade, o Direito lança mão dos regramentos penais, que são do tipo causa-efeito / ação criminosa-pena.


A grande chave hermenêutica para a compreensão antropológico-jurídica das sociedades está na percepção de que todo e qualquer grupo humano tem necessidades básicas. E, de acordo com as necessidades básicas, surgem as instituições básicas, a fim de garanti-las. Cite-se, como exemplo, a necessidade de reprodução, que é garantida pela instituição familiar. É assim que surgem as Nomos e Thesis.


Apesar do caráter tríplice do Direito, há, hoje em dia, uma tendência a compreendê-lo somente como o conjunto de regramentos que estabelecem direitos e deveres. É dizer que a tendência de hoje é a de adotar somente o vetor humano de causalidade como sendo do campo jurídico.

Exemplo disso deu-se, inclusive, ontem, em uma sustentação oral em que eu defendia a revisão criminal de um cliente. Como eu, em minha fala, citei que era ‘aprendiz de jurista’, o Procurador de Justiça utilizou-se dessa minha fala para tentar me ensinar algo: disse-me que, já que eu queria aprender, que eu não havia realizado a justificação criminal da nova prova que eu utilizei na revisão. Além da leviandade em dizer isso, uma vez que a justificação havia sido feita, restou estampada a sua estreiteza de visão acerca do que é ser jurista: para ele, parece ser sinônimo de técnico; um mero conhecedor dos procedimentos legais.

Aquele procurador é nitidamente é um dos que diminui o Direito ao vetor da causalidade humana; um dos que pensa que o Direito é somente Thesis, e não Nomos. Aliás, qualquer um que se apega à pequenez da forma em detrimento do conteúdo não é uma pessoa digna de ser tida como jurista. Pretender-se jurista e pressupor que o Direito limita-se a um conjunto de regras procedimentais é o mesmo que se casar com alguém única e exclusivamente pela esbeltez do corpo.


Em oposição, parece ter se tornado claro que é o primeiro vetor, o das virtudes que conduzem à empatia, que conecta o Direito com a educação; a arte jurídica com a importância da formação humana básica. Se o Direito pressupõe o desenvolvimento da razão, forçosamente é de seu campo, também, a formação virtuosa do ser humano. Aliás, a formação humanística é o seu campo propedêutico, os fundamentos de todo e qualquer constructo jurídico. Tornar o ser humano capaz de enxergar a ordem cósmica e, por conseguinte, a ordem social é o maior e mais nobre objetivo do Direito.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2015.


HAYEK, Friedrich Augus von apud CHEDIAK, Julian Fonseca Peña. Direito, Legislação e Liberdade, in NEVES, José Roberto de Castro. O que os grandes livros ensinam sobre justiça. 1ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019. p. 405-412.


ZEN - A Vida do Mestre Dogen (filme). Disponível em <youtube.com/watch?v=4ID87y_3BmI>. Fala mencionada em 1:33:07.

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