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Foto do escritorCésar Maximiano

A Crise Semântica

A Sociedade que abandonou a Lógica


Na obra The Confutation of Tyndale´s Answers, de Thomas More, há um diálogo entre uma Testemunha, um Doutor e um Lorde. Eles dialogam sobre o personagem Hunne ter sido acusado de heresia, posto que o rei Ricardo II havia tornado ilegal e herético levar questões inglesas para julgamento em tribunais fora da Inglaterra. Eis o diálogo:

Testemunha: Este doutor disse-me que se Hunne não tivesse invocado a supremacia do rei, jamais teria sido acusado de heresia.
Doutor: Na verdade eu disse que, se Hunne não tivesse sido acusado de heresia, jamais teria invocado a supremacia do rei.
Testemunha: Oh, meus lordes, estou contente de que me considereis homem sincero e fiel.
Lorde: Eu percebi, bom homem, é que desde que as palavras sejam as mesmas, não te importa como estejam postas; pois tudo te é igual: um moinho movido a cavalo ou um cavalo que move moinho, beber antes de ir ou ir antes de beber.
Testemunha: Não, meus lordes, não beberei

Tratava-se de Testemunha iletrada, e sua confusão acabou causando riso dentre os lordes.

Todavia, ad argumentandum tantum, o que ocorreria se elevássemos esse iletrado da estória de Testemunha a Juiz?


Não se trata de acusar os magistrados de ignóbeis, mas sim de apontar a gritante existência de uma crise social pandêmica, que não é ética, tampouco moral, mas sim linguística, e, portanto, lógica.


Ludvig Wittgenstein, já no início dos anos 30, apontou para uma dramática mudança de compreensão da linguagem nas relações com o mundo. O pensador chamou a atenção para a importância da projeção, que indicia um deslocamento da explicação do valor semântico para a atividade do sujeito. Em apertada síntese, a compreensão do mundo está intimamente relacionada à capacidade linguística da pessoa, pois a relação que o sujeito tem com o objeto, ou seja, que o indivíduo tem com o mundo, é dada através de proposições dotadas de sentido - são elas, as proposições, que constroem um modelo da realidade, que pode ser representativo da verdade ou não.


Assim, se uma proposição logicamente equivocada é tomada como verdadeira por um indivíduo, tal indivíduo estará fadado à construção racional de um mundo que não corresponde à realidade, a exemplo da Testemunha de More.


Um breve passeio pelas redes sociais da atualidade já escancara a problemática: a média das pessoas não tem capacidade de desenvolver e concatenar ideias de forma lógica. Infelizmente tornou-se comum, tanto em discussões de internet quanto em decisões judiciais, a amplificação de um pequeno trecho da fala do interlocutor, que não implica no sentido da exposição, descartando-se todo o restante, e, assim, transviando-se o sentido lógico da dialética que se pretendia.


Dou como exemplo o ocorrido em um processo criminal em que figuro como defensor. Trata-se de suposto crime de estelionato, onde um dos réus, que trabalha com construção civil, e que já havia se mostrado humilde e sem estudo avançado, preso por sua conta bancária ter sido usada, em tese, para a perpetração da venda de um veículo, por terceiro e não por si, que não fora entregue ao comprador, estava a ser ouvido por uma magistrada. A juíza perguntou a ele: "O senhor sabe por que está sendo processado?". Ele, na sua simplicidade, respondeu: "Sim. Parece que é sobre o 'roubo' de um carro". A magistrada, de modo ignóbil, afirmou: "Ah, quer dizer então que o senhor também comete roubo, é?".


Infelizmente, exemplos não faltam àqueles que lidam com o Poder Estatal. Este estado de torpor das coisas é apontado, em algumas obras, como fruto do abandono das artes liberais, no final da Idade Média, que culminou no surgimento de sistemas de ensino baseados nas corporações de ofício, onde a preocupação está em formar indivíduos "úteis" à sociedade, e não na emancipação intelectual da humanidade.


E é nesta esteira de pensamento, qual seja a da produção em massa, que se elegem juízes, promotores e advogados. E aqueles que atuam sabem que os prodígios intelectuais da "Testemunha" de More são a regra em um sistema que privilegia a produção em detrimento da mais comezinha das lógicas.


Alçar ignóbeis a postos de importante produção intelectual faz lembrar a caricata figura de Humpty-Dumpty, personagem da obra de Carrol (Alice Através do Espelho), mas que tem sua origem em uma cantiga infantil da época vitoriana. A cantiga diz:

Humpy-Dumpty sat on a wall,
Humpty-Dumpty had a great fall:
All the king´s horses, and all the king´s men
Cannot put Humpty-Dumpty together again
(Humpty Dumpty num muro se aboletou,
Humpty Dumpty lá de cima despencou.
Todos os cavalos e os homens do Rei a arfar
Não conseguiram de novo lá para cima o içar)

A personagem é interpretada como um grande ovo cósmico, e sua queda simboliza a queda de Lúcifer e do próprio homem. E é Humpty-Dumpty, ou seja, o homem caído, que perdeu o paraíso, quem dá sentido a tudo aquilo que não tem sentido; é Humpty-Dumpty quem transvia o significado das palavras, dando a elas o sentido que bem entende.


Eis um excerto do diálogo entre Humpty-Dumpty e Alice, cuja discussão se dá entre ganhar presentes de aniversário ou de desaniversário:

- (...) Há glória para você!
- Não sei o que você quer dizer com "glória" - Alice disse.
Humpty-Dumpty sorriu com desdém.
- É óbvio que não sabe... até que eu lhe diga. Eu quis dizer: "Há um belo argumento infalível para você!"
- Mas "glória" não significa "um belo argumento infalível" - Alice objetou.
- Quando eu uso uma palavra, - Humpty-Dumpty disse com certo desprezo - ela significa o que eu quiser que ela signifique... Nem mais nem menos.

Que bela crítica ao relativismo filosófico, que promoveu um giro de cento e oitenta graus na hermenêutica jurídica!


Para a filosofia relativista, que tem suas origens nos nominalistas da Era Medieval, mas que tomou corpo e se espraiou somente entre os sécs. XIX e XX, a moral, a religião e a política são verdades relativas ao indivíduos, e jamais verdades objetivas e transcendentes. As coisas são como são e cada indivíduo pode interpretá-las livremente.


Por isso houve um giro de cento e oitenta graus na hermenêutica jurídica, visto que, outrora kantiana, buscava seu nascedouro nos imperativos categóricos, ou seja, na ética e na moral metafísica, cujo caminho revelado para o seu alcance é o da Lógica. Agora relativista, contudo, a hermenêutica deixa de olhar para fora e passa a olhar para dentro, alçando o indivíduo em si mesmo à sua própria medida do mundo.


O problema que disso deriva é facilmente prenunciado: quem diz o que é certo ou errado? Humpty-Dumpty e Alice continuam a discussão:

- A questão é - disse Alice - se você pode fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes.
- A questão é - disse Humpty-Dumpty - quem será o chefe... E eis tudo.

Quem pode mais, chora menos: o detentor do poder é quem decide o que é real e o que não é. Na seara jurídica, o detentor do poder é quem decide o que é justo e o que não é - exatamente como Trasímaco explanou ao atacar a ideia metafísica de Justiça de Sócrates.


Os poucos que entendem o que está a ocorrer, e que não se calam diante de tamanho absurdo, tendem a ser rotulados de desarrazoados, e, em última análise, o que recebem é somente o solavanco das "doutas" palavras finais, que autoritariamente situam o teimoso interlocutor: "é assim porque eu quero, e pronto".


Os que acatam o autoritarismo são bem-vindos, como deixa transparecer Humpty-Dumpty no diálogo em que fala para Alice que algumas palavras são geniosas:

- Principalmente verbos, são os mais orgulhosos... Com os adjetivos você pode fazer de tudo, mas não com os verbos... No entanto eu posso lidar com todos eles! Impenetrabilidade! É o que eu digo!
- Pode me dizer, por favor - disse Alice - o que isso significa?
- Agora você fala como uma criança razoável - disse Humpty-Dumpty -, parecendo mais contente. Eu quis dizer com "impenetrabilidade" que já falamos demais desse assunto e que seria bom que você mencionasse o que pretende fazer em seguida (...).

Eis o modo de perpetuação de tão insano status quo: os poucos que se exsurgem são massacrados até desistirem de impor a obrigatória lógica jurídica às atuações do jogo processual. Afinal, quem tem o poder sabe, mais por sentir do que por pensar, que a relação de domínio é uma via de mão dupla, e a sua força não vem de cima para baixo, mas vai de baixo para cima.


Foucalt prega que o poder é uma prática social constituída historicamente, e que não está no rei, no presidente, no juiz, em uma ou algumas pessoas. Em verdade, o poder está por toda parte, em uma relação flutuante de governante e governado.


Aprendemos, desde cedo, pelas instituições (escolas, clubes, prisões, quartéis) aquilo que chamam de "disciplina", pela qual as relações de poder se tornam mais facilmente observáveis, pois cria, desde cedo, uma relação assimétrica que institui a autoridade e a obediência, irradiando-se da periferia para o centro, de baixo para cima. É isso que dá sustentação à autoridade.


Quem se exsurge, repise-se, é pisoteado por uma avalanche de decisões sem sentido, desprovidas de qualquer senso apodítico, mas imantadas pelo embrulho da "autoridade".

Assim, simplesmente desistindo de lutar contra a irrefreável correnteza, o Advogado da Lógica despede-se do juiz, do promotor e dos colegas que compõem a base da pirâmide:

- Adeus, até nos encontrarmos de novo! - disse [Alice] com o máximo de animação que conseguiu.
- Eu não a reconheceria de novo se nos encontrássemos - Humpty-Dumpty replicou num tom descontente, dando a ela um dedo para apertar. - Você é tão idêntica às outras pessoas.
- É pelo rosto que nos reconhecemos - disse Alice pensativa.
- Pois é disso que me queixo - disse Humpty-Dumpty. - Seu rosto é o mesmo de todo mundo, então... - (marcando os lugares no ar com o polegar) - ... nariz no meio, boca por baixo. É sempre a mesma. Agora, se você tivesse os dois olhos ao lado do nariz... ou a boca para cima... já seria de alguma ajuda.
- Não ia parecer bem - Alice objetou. Mas Humpty-Dumpty apenas fechou os olhos e disse:
- Espere até ter tentado.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BODART, Cristiano das N. Poder em Foucalt. Disponível em <https://cafecomsociologia.com/o-poder-em-michael-foucault/#:~:text=Para%20Foucault%20o%20poder%20%C3....>. Acesso em 06/03/2021.


CARROLL, Lewis. Humpty Dumpty. Disponível em: < http://www.arquivors.com/lcarroll1.htm>. Acesso em 06/03/2021.


GONÇALVES, Higor B. Humpty Dumpty, o sabe-tudo prosopagnóstico. Disponível em < https://thebloggerwocky.wordpress.com/2011/05/28/humpty-dumptyosabe-tudo-prosopagnostico/>. Acesso em 06/03/2021.


JOSEPH, Miriam. O Trivium: as artes liberais da lógica, gramática e retórica: entendendo a natureza e a função da linguagem. São Paulo: É Realizações, 2008.


MARQUES, António. A Crise da Linguagem Representacionista em Wittgenstein. Disponível em:<https://www.jstor.org/stable/40337704?seq=1>. Acesso em 06/03/2021.

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