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Foto do escritorCésar Maximiano

A Escrita e o Direito Contemporâneo



1. INTRODUÇÃO


Paul Ricoeur e Michel de Certeau, já influenciados pela virada linguística, contribuíram sobremaneira para a teorização acerca da importância da escrita, defendendo que tal ferramenta histórico-filosófica, para além de se apresentar como verdadeiro elo entre o passado e o presente, funciona também como descoberta de si mesmo através do outro[1], sendo ainda capaz de abrir uma fenda atemporal e poiética – atemporal no sentido de superar a barreira do tempo, e poiética no sentido de ser capaz de criar tantas realidades quantos indivíduos que dela se apropriam.

O Direito, direta e exclusivamente dependente da escrita, pode, portanto, ser analisado sob o prisma de tais pensadores.



2. A FUNÇÃO DA ESCRITA E A CIÊNCIA HERMENÊUTICA


A escrita, cujas origens remontam a antiga civilização mesopotâmica de seis mil anos atrás, é uma ferramenta que possibilita que um pensamento se materialize. Deste modo, a escrita é o contato mais próximo com aquilo que se falou, um gérmen para a criação de significações que têm como base não aquilo que ocorreu, mas sim aquilo que foi traduzido para tal linguagem.

No espeque histórico, a escrita apresenta-se como uma marca do que não está mais presente, uma verdadeira fala do ausente. A escrita, na historiografia, é tanto desveladora quanto ocultadora: à medida que desvela aquilo que foi escolhido explicitar, oculta, até certo ponto, aquilo que se decidiu omitir. Deste modo, por mais imparcial que possa parecer uma escrita, ela guarda em sua natureza os genes do escritor, que são trazidos ao lume através da leitura histórico-comparativa.

O escritor, que é, no sentido de produção escrita, um historiador, quando escolhe o que escrever, retalia a realidade, pinçando o que deseja reduzir a termo com sinais e marcas. Trata-se de um ato hermenêutico que enfoca parte de uma realidade anacrônica. Quanto mais a operação historiográfica deixar nítida a deformação existente entre os eventos ocorridos e a descrição, tanto mais causará estranhamento. Neste caso, o estranhamento é resultado de uma escrita histórica consciente de si mesma, sincera ao estampar e suscitar a compreensão da distância existente entre os sujeitos que a leem, os fatos narrados e a própria narrativa.

O passado pode ser questionado através da hermenêutica da falta: da busca das sobras e seus vestígios, aquilo que foi omitido acaba ganhando destaque, e sua ausência é, por si, indicativo de importantes características do escritor. A escrita revela tanto o que está positivado quanto o seu negativo, ou seja, aquilo que não se fez constar.

Ao contrário do texto escrito, que goza de finitude, tanto de seu objeto quanto de sua forma, o leitor goza de um vasto campo para reflexões e buscas de problemáticas. E é assim que o passado passa a ser alvo de dúvidas, questionamentos e indagações. O exercício hermenêutico, portanto, não é só a efetivação do outro (alteridade), como também o fértil campo de onde nascem grandes ideias, cujas sementes são a escrita pretérita (poiesis).



3. A ESCRITA, A HERMENÊUTICA E O DIREITO


No campo do Direito, há um brocardo, introduzido pelo Direito canônico do séc. XIII, que diz que quo non est in actis non est in mundo (o que não está nos autos processuais não está no mundo[2]). Este é o princípio da escritura, que regulamenta como prova aquilo que está formalizado e escrito dentro do processo. Os alicerces de sua existência estão na garantia da segurança jurídica dos atos processuais[3].

Certeau analisa a cientificidade do trabalho hermenêutico, concebendo o lugar da escrita como já materializado. A escrita como materialização de uma ideia ou de um fato é de fundamental importância para o mundo do Direito, em especial para o exercício da judicatura, pois o que há escrito no processo é, sabidamente, uma mistura de verdades e inverdades, de ciência e ficção, e o trabalho hermenêutico sério, pese não ter a capacidade de alcançar a verdade total, é capaz de minimizar os possíveis equívocos relacionados ao passado.

Ricoeur, por seu turno, defende uma visão mais transcendente que a de Certeau, mas que igualmente se aplica ao Direito. Para Ricoeur, que tem a escrita como algo de passagem, onde o Eu e o Outro se encontram, o sujeito leitor compreende uma escrita passada, mas não a repete, pois a partir dela cria algo, em verdadeira inovação– eis o sentido poiético citado alhures. Ao se transferir essa percepção histórica da escrita para o mundo do Direito, temos que o trabalho das partes conflitantes no processo, que é o de municiá-lo (o processo) de informações que lhes são caras aos seus objetivos, possibilita que o juiz hermeneuta decifre uma gama de símbolos, dando sentido à alteridade que se lhe apresenta, para que, em seu mister criativo, seja capaz de abrir lugar ao passado no momento presente[4].

Não é outro o sentido que o Professor Miguel Reale, em sua Teoria Tridimensional do Direito, dá à produção jurídica: o juiz, que impreterivelmente deve(ria) ser hermeneuta, proporciona (ou deveria proporcionar) a dialética entre as partes, da qual há de emergir a descrição dos fatos, em maior ou menor acurácia para com a realidade; a partir dessa descrição fática, fruto da dialética, é que o julgador busca os valores a serem aplicados, criando, assim, a norma.

É a partir do caso concreto, redigido no processo com todos os vícios que a parte lhe adorna, e que devem ser minimizados pela cientificidade da hermenêutica do julgador, que se produz o Direito, e não a partir de axiomas subscritos em um apanhado de dispositivos legais (leis) ou decisionais (jurisprudência). Em linguagem lógico-formal, o Direito deve ser produzido pelo método indutivo, e não pelo método dedutivo.

O tridimensionalismo de Reale é, segundo ele próprio, concreto, pois tem por fundamento a experiência jurídica. Em miúdos, o fenômeno jurídico é considerado fato ordenado juridicamente, conforme valores reconhecidos. Fato, valor e norma estabelecem, entre si, uma relação dialética que contempla sínteses abertas, que não reduzem a oposição dos elementos do processo em uma síntese unificadora e eliminadora da dicotomia anterior, como a síntese concebida por Fitche e Hegel[5].

Trata-se de uma interpretação dada à produção do pujante Direito que se assemelha à ideia de Ricoeur, no sentido de que na produção da norma, tal qual no trabalho do historiador hermeneuta, ocorre de um realinhamento da humanidade: a compreensão de uma escrita passada, a partir da qual se cria algo. E essa ideia neonata não elimina a dicotomia anteriormente criada pelo processo dialético; trata-se de um fruto que não necessita contrariar suas raízes para se fazer existente no mundo.

O trabalho do hermeneuta, portanto o do historiador e o do juiz, localiza-se (ou deveria localizar-se) em um campo vasto de sentidos edificados e presentificados. A “presentificação” do passado nesse processo criativo demonstra que a escrita é atemporal, aberta para leituras e entendimentos do presente[6].



4. A ESCRITA, A HERMENÊUTICA E O DIREITO CONTEMPORÂNEO


Apesar da inegável importância da escrita para o Direito, o que se verifica nos julgamentos de juízes e tribunais do Brasil hodierno é algo muito distante da hermenêutica cientificamente válida. Talvez pela massiva carga de trabalho, além de outros fatores, a atenção que se dá àquilo que é trazido pelas partes, se existente, é mínima. O brocardo quo non est in actis non est in mundo fora corrompido de tal forma que o que se vê é o Direito resumido a um “conjunto de imperscrutáveis fundamentos para as partes, previstos num banco de dados prévios de decisões modelares”; uma verdadeira tábua que abarca variadas ementas, julgados e enunciados de súmulas, que lá estão para que o aplicador do Direito, como se estivesse em um self service, pince este ou aquele axioma jurisprudencial para confirmar seu próprio entendimento[7], sem qualquer poiesis no procedimento.

Esse confirmation bias não é sequer o oposto daquilo que estas linhas consideram como “bom Direito”: foi dito há pouco que a função poiética do Direito se dá pela indução, ou seja, a partir da casuística é que se chega ao valor social, criando-se destarte a norma. O oposto disso, portanto, seria partir do axioma para a produção da norma, em um método dedutivo de solução de conflitos.

Todavia, os juízes atuais conseguem, com ímpar maestria, jogar o sacrossanto nome do Direito na mais excrementada das valas da história da formação do pensamento jurídico: não se utilizam de indução, tampouco de dedução. O confirmation bias, prática asquerosa e vil da atualidade, parte da vontade do detentor do poder, passando pelo self service de decisões pretéritas, para então ofertar uma impalatável solução ao caso concreto: uma decisão no mais das vezes ignóbil, pois desprovida de fundamentação, que só é válida dada a autoridade conferida a um indivíduo que se demonstra incapaz de realizar um trabalho efetivamente hermenêutico.

Ao assim agirem, os juízes impossibilitam a criação do Direito através da escrita, essa arte atemporal e poiética, capaz de ligar o passado e o presente (cf. Certeau), em uma pujância criativa que se faz escrita no presente, e que, portanto, servirá como o gérmen à construção do futuro (cf. Ricoeur).

Ao buscarem sustentáculo decisional para além dos nómos processuais, os juízes proscrevem o debate processual para fora da ótica do processo. A análise jurídica passa a depender de dados, de julgados pretéritos que fogem da dialética, uma vez que a jurisprudência, cujos fundamentos determinantes deveriam ser submetidos às partes, somente ingressa na “discussão” através das decisões, no solavanco da surpresa, sem permitir a análise, pelos envolvidos, de sua adequação e coerência com a hipótese que se estuda[8].

A sistemática processual brasileira, no intuito de remediar, mesmo que minimamente, essa triste realidade, proporciona às partes a possibilidade de ofertar alguns recursos para que a decisão seja, ela mesma, discutida dentro do processo. Todavia, na maciça maioria das vezes, o labor recursal das partes é simplesmente ignorado pelos juízes, bem como pelas instâncias superiores. Aliás, a dialética não é não só evitada, senão verdadeiramente desprezada pela quase que totalidade das autoridades judiciárias da atualidade, que, beirando o ridículo, quando não o atingem em cheio, limitam-se a “papagaiar” as mesmas infundadas razões da decisão anterior, até mesmo quando o recurso aponta as razões como infundadas.

Não há maior sorte na utilização da ferramenta denominada embargos de declaração, que em tese prestar-se-iam a esclarecer alguma dúvida, obscuridade ou lacuna da decisão judicial: os magistrados limitam-se, vez mais, a “papagaiar” que a decisão não é obscura, duvidosa ou lacunosa, negando, de plano, toda e qualquer tentativa de dialética processual.

Deste modo, repise-se, a atual atuação do Poder Judiciário brasileiro não se encaixa sequer no oposto àquilo que estas linhas guardam como o “bom Direito”, tratando-se, em verdade, de uma mostruosa tertia via, que não está aqui, tampouco acolá, e que esvazia a escrita e a hermenêutica de significado e importância.



5. CONCLUSÃO


A escrita é uma ferramenta de fundamental importância para o desenvolvimento da humanidade, seja por trazer ao momento presente dados fundamentais do passado, importância salientada pelo pensamento de Certeau, seja por dar ao momento presente a oportunidade de, em comunhão com o passado, criar-se, em uma inovação conectada com suas raízes temporais, conforme orienta Ricoeur.

Todavia, para se gozar da firmeza do entendimento de Certeau, e/ou da transcendência do pensamento de Ricoeur, são necessários métodos aceitáveis de interpretação, que respeitam os princípios da lógica humana, métodos estes que, juntos, formam a ciência da hermenêutica.

O melhor modo que o ser humano encontrou de manifestar a Arte do Direito[9], ao menos até o presente momento, foi o processo: espaço no qual há (ou deveria haver) a construção de ideias através do processo dialético, d´onde o juiz, reconstruindo o passado para si e para o processo em si, elabora a solução para o caso concreto, solução esta chamada de norma.

Infelizmente, a gritante maioria dos juízes e tribunais brasileiros abandonou a “Arte” do Direito, esvaziando de importância os reais significados da escrita, adotando, para a solução dos problemas que lhes chegam, vieses e heurísticas personalíssimos, ponto de partida para buscarem alguma escrita pretérita que confirme suas decisões preconcebidas.

Nossas vidas, nossa liberdade, nossas propriedades, nossa segurança, nossos bens jurídicos mais preciosos, portanto, estão nas mãos de indivíduos que desprezam a importância filosófica da escrita, que agem como bem entendem, e que, por isso, produzem um Direito completamente esvaziado de significado.

Estamos nas mãos de indivíduos cuja pena não é capaz de traduzir em signos escritos a atemporalidade do pensamento humano; estamos nas mãos de indivíduos cuja pena não é capaz de trazer o passado ao presente a contento; estamos nas mãos de indivíduos cuja pena portanto, não é igualmente dotada da poiesis que o Direito pressupõe.



6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ESSENBURG, Aline Sabbi e SILVA, Rogério de Moraes. Tópicos Especiais de Hermenêutica. Brasília: Unileya, 2021.

[1] CARVALHO, José Maurício de. A teoria tridimensional do Direito de Miguel Reale. São João del Rei: Revista Estudos Filosóficos nº 14/2015. p. 201.


NUNES, Dierle. O que não está nos autos, não está no mundo? E a jurisprudência, onde está?. Disponível em < http://genjuridico.com.br/2015/09/11/o-que-nao-esta-nos-autos-nao-esta-no-mundo-e-a-jurisprudencia-onde-esta/>. Acesso em 27/07/2021.


SCHWARTZ, Germano e MACEDO, Elaine. Pode o Direito ser Arte? Respotas a partir do Direito & Literatura. Disponível em < http://www.publicadireito.com.br/conpedi/manaus/arquivos/anais/salvador/germano_schwartz.pdf>. Acesso em 27/07/2021.


TRT3, Princípio da conexão liga o processo ao mundo de informações. Disponível em < http://www.sintese.com/noticia_integra_new.asp?id=344656>. Acesso em 27/07/2021.

[1] Na medida em que a alteridade desvela a ipseidade. [2] O mundo aqui, por óbvio, é o jurídico. Tal brocardo traz à tona a importância da escrita para o Direito, que é fundamental, pois sem ela não há, de fato, o Direito. [3] TRT3, Princípio da conexão liga o processo ao mundo de informações. Disponível em < http://www.sintese.com/noticia_integra_new.asp?id=344656>. Acesso em 27/07/2021. [4] O sentido filosófico não aplicado ao Direito de Ricoeur sobre a escrita foi retirado de ESSENBURG, Aline Sabbi e SILVA, Rogério de Moraes. Tópicos Especiais de Hermenêutica. Brasília: Unileya, 2021. [5] CARVALHO, José Maurício de. A teoria tridimensional do Direito de Miguel Reale. São João del Rei: Revista Estudos Filosóficos nº 14/2015. p. 201. [6] Essenburg, op. cit. [7] NUNES, Dierle. O que não está nos autos, não está no mundo? E a jurisprudência, onde está?. Disponível em < http://genjuridico.com.br/2015/09/11/o-que-nao-esta-nos-autos-nao-esta-no-mundo-e-a-jurisprudencia-onde-esta/>. Acesso em 27/07/2021. [8]Idem. [9] Em que pese este escritor alinhar-se à escola aristotélica, à qual o Justo é Virtude e não Arte, posto que a Arte se basta em si mesma, e a Virtude não, toma a liberdade de tratar o Direito como Arte no sentido de que ambos são abstrações construídas sobre outras abstrações – o Direito sobre as normas, e a Arte sobre as obras. Deste modo, tomando emprestado o ensinamento de Germano Schwarz e Elaine Macedo, afirma que, no plano das estratégias cognitivas, não existe diferença entre abstrações de abstrações, sendo Arte e Direito correlatos.

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