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Foto do escritorCésar Maximiano

As Origens do Totalitarismo Judiciário


Fig. 0. Ministros do STF

Dia desses, quando em deslocamento para um supermercado que fica próximo ao que, na minha época de caserna, era chamado de Circunscrição do Serviço Militar, quartel onde servi nos idos anos 2000, deparei com banheiros químicos, barracas, uma cantina improvisada e um grupo considerável de pessoas vestidas com camisetas verde-amarelas, empunhando bandeiras do Brasil. A "ocupação" defronte ao quartel do Exército Brasileiro era ambientada, ainda, por canções das Forças Armadas, que saíam de alguma caixa de som local.


Enquanto esperava com meu veículo entre a via que sobe e a que desce (há uma ilha no meio da avenida), um veículo do Corpo de Bombeiros passou, e, para saudar os "patriotas", acionou, por duas vezes, a sirene. Todos acenaram e bradaram algumas palavras de ordem.


Fig. 01. Manifestações em Sorocaba (Foto de G1, 02/11/2022)

Desde que descobri a potência filosófica da teoria substancial, costumo buscar as causas aristotélicas de tudo no mundo. Qual é a causa final que move essas pessoas? O que elas querem? Bem, o que elas querem é estapafúrdio e inconstitucional. Querem que as Forças Armadas assumam o Poder, ao menos temporariamente.


Qual é a causa eficiente? Em outras palavras, o que as leva a querer a tomada de poder pelas Forças Armadas? Elas basicamente não aceitam a vitória de Lula. E por que não aceitam? Elas não aceitam por, basicamente, três motivos: i) para elas, Lula é corrupto; ii) as eleições foram fraudadas; iii) o TSE e o STF agiram deliberadamente contra o movimento bolsonarista, tanto antes quanto depois das Eleições.


Quanto às eleições terem sido fraudadas, devo dizer que as alegações são verdadeiramente pífias, ao menos sob o ponto de vista da lógica: há uma confusão entre "existir a possibilidade de fraude" e "ter existido fraude". Oras, é óbvio que nenhum sistema com a magnitude das eleições nacionais é completamente protegido de fraude, mas daí para a existência efetiva de uma fraude há um caminho imenso a ser percorrido, mormente porque, para a ocorrência de vitória em um pleito gigantesco, faz-se necessária uma gigantesca fraude eleitoral, que, se de fato existisse, teria deixado rastros bem vísíveis. Feliz ou infelizmente, não foi o caso.


Quanto à corrupção de Lula e as ações do TSE e do STF, devo iniciar dizendo que ambas estão imbricadas, umbilicalmente conectadas. Explico. Causa-me espanto ver as mesmas pessoas que aplaudiram o impeachment de Dilma Roussef e a medieval atuação de Sérgio Moro dentro da Lava-Jato reclamarem de ilegalidades e inconstitucionalidades advindas do Poder Judiciário. Também me causa espanto ver os apoiadores do lulo-petismo quedarem-se silentes, e alguns até apoiarem as ilicitudes e inconstitucionalidades que o Poder Judiciário tem cometido contra o bolsonarismo.


A conclusão a que chego é que, dada a polaridade à qual o povo brasileiro fora submetido, justiça e injustiça não são mais determinadas por critérios objetivos, sendo sua ocorrência completamente dependente do sujeito que está sendo (in)justiçado. Todavia, o que se faz presente, tanto em um caso como em outro, é a atuação do Poder Judiciário, que, já faz algum tempo, tem se arvorado na superação das leis e da Constituição Federal.


Importante dizer que o intuito destas linhas não é o de expor os absurdos que o Estado-Juiz tem feito, mas sim trazer ao lume o momentum histórico da virada; a involução e o recrudescimento do pensamento jurídico-filosófico que culminou nesse atual estado de coisas, onde a vontade do julgador é aquilo que se adota como sendo o verdadeiro Direito. Iniciemos a digressão histórica, portanto.


Fig. 02. Triunfo de São Tomás de Aquino sobre Averroes

Para Santo Tomás de Aquino (séc. XIII d.C.), "a lei é ato da razão, que impele a vontade". Em outros termos, a lei só é lei se estiver envolvida pela racionalidade humana, ou seja, pela capacidade de apreender as informações do mundo e, a partir delas, chegar a conclusões universais, em um método que é chamado de indutivo. A ratio que deriva dessa universalidade é aquilo que deve(ria) guiar a vontade subjetiva, individual. Em verdadeira simplificação, pode-se resumir essa ideia na seguinte premissa: "não é a vontade do homem que molda o mundo, e sim o mundo que molda a vontade do homem".


Aquino defendia a existência de algo que chamou de lei eterna, uma lei que se impõe às coisas necessárias e imutáveis (metafísica ou direito natural), às coisas naturais contingentes (que estão no mundo físico e que respondem às leis da natureza) e ao homem (que também está no mundo físico, e, para se organizar, elabora leis humanas). Deste modo, a lei eterna é participada por toda a criação, sendo o sustentáculo do direito natural, da lei natural e também das leis dos homens.


Fig. 03. Francisco Suárez

Três séculos depois, Francisco Suárez, também escolástico, todavia já tomado pelo espírito do nominalismo (que nega a existência real dos universais), defendeu o contrário: a lei é ato da vontade, que é moldada pela razão. É dizer que, para Suárez, a vontade do homem é o seu motor primeiro, e é a partir dela que o ser humano molda a sua razão. Percebe-se a entronização da vontade humana, ou seja, a elevação da figura humana sobre a natureza. Simplificando, Suárez defende que "não é a razão do homem que controla a sua vontade, mas sim a sua vontade que molda a sua razão", e, portanto, "não é o mundo que molda a vontade do homem, e sim a vontade do homem que molda o mundo".


Frise-se, contudo, que, apesar de Suárez ter refutado a ideia de uma metafísica universal, ainda havia em seu pensamento a questão da origem

divina do Direito. Existia, assim, uma lacuna em suas ideias: ora, se a vontade humana domina a razão, qual seria o papel de Deus perante os direitos naturais?


Fig. 04. Hugo Grócio

Quem colmata essa lacuna é um contemporâneo de Suárez, chamado Hugo Grócio (séc. XVI). Grócio dá um importante passo rumo à modernidade ao introduzir o imanentismo. Imanente é aquilo que é inerente e inseparável à essência de um ser. Para Grócio, o direito natural é intrínseco, imanente ao homem: trata-se de um direito subsistente por si mesmo, tendo como origem a própria natureza humana. O direito natural seria algo infuso na existência do homem, corolário de sua existência própria. Grócio rompe com a escolástica, na medida em que refuta a teoria da participação, ou seja, nega a teoria que afirma que o Bom, o Belo e o Justo são participados à criação pelo Criador.



Um século mais tarde (séc. XVII), Samuel Puffendorf, em uma tentativa de defender a lei eterna do Aquinate (Santo Tomás de Aquino), reinterpreta-a de modo equivocado: a lei eterna é algo para além de Deus, que obriga Deus, uma lei para Deus. Na linha de Grócio, que refuta a participação de Deus no direito natural, Puffendorf divorcia a lei eterna de qualquer aspecto divino, e, com isso, retira do Direito todo e qualquer aspecto divino, desconectando, assim, Direito e Teologia.


Grócio e Puffendorf enfraqueceram a figura de Deus dentro do Direito. Todavia, ainda remanescia a lei eterna, e com ela a lei natural e os direitos naturais. Foi então que surgiu da mente de Christian Thomasio (séc. XVII) a ideia de que a lei eterna nada mais seria que uma ficção escolástica. Para ele, a filosofia ignora se o direito natural é conectado a algum mandato divino, e, por ignorar tal fato, deve prescindir do fundamento divino do direito natural. Thomasio emancipa a Filosofia do Direito de todo o caráter transcendente que até então pertencia à Filosofia lato sensu.

Fig. 05. Christian Thomasio

Temos, até agora, Grócio e Puffendorf enfraquecendo a ideia de participação de Deus no Direito, e Thomasio enfraquecendo a ideia da existência de uma lei eterna, de uma conexão entre a ratio jurídica e algo transcendental. Eis então o campo ideal para o surgimento do imanentismo contemporâneo dos séculos XIX-XX. Tratou-se de um fenômeno tão significativo na cultura ocidental daquela época que se chegou a cogitar a "morte de Deus", tendo como principal figura de tal ideia o filólogo Friedrich Wilhelm Nietzsche (séc. XX).


A modernidade, então, dá à luz uma série de movimentos baseados no abandono da metafísica: o racionalismo ateu, o materialismo, o agnosticismo e o positivismo - todos eles partem do pressuposto de que o homem está completamente emancipado, tanto de qualquer elemento transcendental como da própria natureza.


No campo do Direito, a rejeição à ideia de transcendência culminou na teoria da existência de um fundamento jurídico baseado no poder humano, um poder inerente ao homem e ao Estado; um poder despido de qualquer vinculação transcendente. Por ser completamente emancipado, tal poder apresentou-se como potencialmente ilimitado, donde surgiram algumas ideias de autocontrole, como a divisão de poderes e o sistema de checks and balances (pesos e contrapesos).


Os ventos da Revolução Francesa trouxeram a ideia de que todo o poder emana do povo. Da racionalidade do povo? Óbvio que não! Dada a superação da filosofia tomista (de São Tomás de Aquino), o poder não emana de outro lugar que não da vontade do povo, chamada pelos franceses de volonté générale, ou 'vontade geral'. De acordo com a sistemática estatal moderna, o poder emana(ria) do povo, e o povo, ao escolher seus representantes, estaria a eles transferindo seu quinhão de poder. Tais representantes elaborariam as leis, que seriam, ao menos indiretamente, a vontade do povo, a fim de que a figura do governante as cumprisse.

Fig. 06. Queda da Bastilha (Rev. Francesa)

O grande temor que embasou tal sistemática foi o do absolutismo do governante, larga e amargamente experimentado pelo povo europeu até aquele momento. Todavia, o que se viu nos séculos seguintes foi o verdadeiro absolutismo dos legisladores. Em pouco tempo, a tirania que pertencia aos governantes arvorou-se dentro do Poder Legislativo, que já não mais legislava a favor do povo, mas sim de acordo com interesses individuais.


Contra tal absolutismo surge um movimento de um dos três Poderes do Estado, que é o Estado-Juiz. Tal movimento é batizado de ativismo judicial. Mesmo diante de uma aparente superação do positivismo, o que há verdadeiramente é a sua manutenção: o poder que outrora se colocava nas mãos dos legisladores acabou sendo transferido para o Poder Judiciário. Antigamente, bastava que as leis cumprissem seus requisitos formais para serem válidas e aplicadas a todos. Hoje em dia, basta que um julgador seja empossado de seu cargo como juiz para que decida como bem entende - ao arrepio das leis humanas e/ou naturais.


Ao olharmos para o panorama atual, questionamo-nos: o que houve com o Direito? Como vimos, a resposta está na própria marcha histórica: destituímos o Direito de qualquer transcendência, e, no lugar dos universais, que eram apreendidos a partir do mundo dos fenômenos, ou seja, da realidade física que nos circunda, no lugar dessa clarividência, entronamos o ser humano. Mas não foi só: dentre todas as características dos seres humanos, elencamos a vontade humana, o seu Wollen, aquilo que o ser humano tem de mais falível, como a fonte do poder político. Isso foi o que aconteceu...


Decisões judiciais autoritárias, destituídas de juridicidade e da mais comezinha das lógicas: amargamos, hoje, os frutos dessa escolha histórica. Como mudar? Bem, não há mudança drástica sem revolução, e não há revolução sem conhecimento. Se sabemos o que fizemos de errado, que reescrevamos nossa história a partir de agora, evitando os erros já cometidos. Isso significa retroagir para o início do equívoco, que foi a guinada que culminou nesse verdadeiro câncer que é o Poder Judiciário da atualidade.


Retroajamos ao ponto crucial, e adotemos um modelo jusfilosófico baseado não na falibilidade da vontade humana, e sim na necessária transcendência do indivíduo. Os limites do Direito não podem continuar sendo a fronteira volitiva do julgador. Há algo além, e é esse algo que deve ser imediatamente restituído.



Referências Pictóricas

Fig. 0. Ministros do STF. Retirada do Jornal da cidade. Disponível em <https://fotos.jornaldacidadeonline.com.br/uploads/fotos/1593525488_5efb44f039b5f.jpg>. Acesso em 28/11/2022. Fig. 01. Disponível em <https://g1.globo.com/sp/sorocaba-jundiai/noticia/2022/11/02/bolsonaristas-fazem-ato-em-frente-a-base-de-apoio-regional-do-exercito-em-sorocaba.ghtml>. Acesso em 28/11/2022. Fig. 02. GOZZOLI, Benozzo. The Yorck Project (2002). Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Tom%C3%A1s_de_Aquino#/media/Ficheiro:Benozzo_Gozzoli_004a.jpg). Acesso em 28/11/2022. Fig. 03. Harris & Ewing Collection - Library of Congress Catalog. Domínio público. Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Francisco_Su%C3%A1rez#/media/Ficheiro:Suarez_LOC_hec.13754_(cropped).jpg>. Acesso em 28/11/2022. Fig. 04. VAN MIEREVELT, Michiel Janz. Portrait of the Dutch lawyer and statesman Hugo de Groot, also known as Hugo Grotius. Domínio Público. Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Hugo_Gr%C3%B3cio#/media/Ficheiro:Michiel_Jansz_van_Mierevelt_-_Hugo_Grotius.jpg>. Acesso em 28/11/2022. Fig. 05. SPORLEDER, Johann Chrsitian Hinrich. Christianus Thomasius (1655–1728), Professor of Law, oil painting in the historic Sessionssaal (conference hall) of the Martin Luther University in Halle (Saale), Germany, photographed by Markus Scholz (cropped and brightened with FotoJet). Domínio Público. Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Christian_Thomasius#/media/Ficheiro:Christian_Thomasius.jpg>. Acesso em 28/11/2022. Fig. 06. Storming of the Bastille. Domínio Público. Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Revolu%C3%A7%C3%A3o_Francesa#/media/Ficheiro:Anonymous_-_Prise_de_la_Bastille.jpg>. Acesso em 28/11/2022.



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