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Foto do escritorCésar Maximiano

"Caso Boate Kiss" e o Pensamento Jurídico Moderno



Os últimos acontecimentos referentes ao Júri do "Caso da Boate Kiss" não causam espanto nem a mim, nem a quem se dedica a estudar a formação do pensamento jurídico moderno. Antes de tratarmos do caminho degenerativo que culminou em duas esdrúxulas decisões do Ministro Fux, atual Presidente do Supremo Tribunal Federal, devemos, primeiro, entender qual é a celeuma jurídica que o caso envolve, passando, então, para as malfadadas decisões, chegando, por fim, ao nosso objetivo, que é demonstrar quão representativas do histórico empobrecimento do Direito são tais decisões.



Compreendendo a celeuma jurídica


O juiz togado do Tribunal do Júri responsável pelo julgamento do "Caso da Boate Kiss" lia a sentença condenatória quando lhe chegou um documento pelas mãos de sua assistente. Ao bater os olhos no conteúdo, sua face transfigurou-se, demonstrando um sentimento de completa desaprovação. Tratava-se de um habeas corpus que garantia a liberdade aos condenados até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.


O habeas corpus é um remédio jurídico, de ordem constitucional, que visa à garantia da liberdade ambulatorial de todos nós. Trata-se de um instituto já presente no antigo Direito Romano, onde um cidadão livre poderia pleitear a liberdade de outro. Na Inglaterra, a Carta de João-Sem-Terra, de 1215, já reproduzia o mesmo dispositivo. No Brasil, o writ foi instituído em 1832, com o advento do Código de Processo Criminal d´outrora.


O habeas corpus impetrado pela defesa de um dos réus do "Caso Boate Kiss" combate a alínea "e", inciso I, do art. 492 do Código de Processo Penal, fruto da reforma promovida pelo famigerado "Pacote Anticrime" de 2019. O novo dispositivo determina que, nos casos de condenação a pena igual ou superior a quinze anos de reclusão no Tribunal do Júri, o juiz deve determinar a execução provisória das penas.


O habeas ataca tal determinação legal por ela contrariar toda a sistemática processual penal, amparada por dispositivo constitucional que garante que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória" (art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal). Não é a primeira vez que o alto escalão do Poder Judiciário flerta com a ideia contrária àquela disposta na Constituição Federal: como se tal dispositivo constitucional dependesse de interpretação [in claris cessat interpretatio], o Supremo Tribunal Federal, em 2009, decidiu-se pela impossibilidade do cumprimento de pena (HC 84.078/MG), mudando sua interpretação em 2016, para garantir a prisão imediata do ex-Presidente Lula (HC 126.292), volvendo à interpretação primeira em 2019 (ADCs 43, 44 e 54).


Portanto, dada a última "interpretação" (leia-se posicionamento político) do STF, é inegável que o art. 492, inciso I, alínea "e", do Código de Processo Penal contraria o disposto no art. 5º, inciso, LVII, da Constituição Federal. Correto, portanto, o posicionamento do Desembargador Relator do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul ao determinar que os réus do "Caso Boate Kiss" permanecessem em liberdade até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.




O posicionamento do Ministério Público do Rio Grande do Sul e as decisões do Ministro Luiz Fux


O posicionamento punitivista do Ministério Público, de modo geral, tornou-se algo comum, aceito e esperado. Todavia, Carthago delenta est - a verdade precisa ser dita -, o órgão, através de seus membros engajados em uma política criminal específica, sofreu um verdadeiro transvio de sua função: nosso sistema deu ao Ministério Público a função de dominus litis, ou seja, de titular da ação penal, e não de acusador natural. Não é à toa que o cargo, no mais das vezes, detém a nomenclatura de Promotor de Justiça, pois, titular da ação que é, sendo, ainda, o custos legis, ou fiscal da lei, sua função não é (ao menos não deveria ser) acusar desmedidamente, mas sim promover a justiça, seja acusando, seja deixando de acusar; seja buscando a condenação, seja não a buscando; seja buscando o cárcere antecipado, quando necessário e amparado pela lei, seja não o buscando, quando não fosse o caso.


Pois bem, temos um Ministério Público completamente desviado de suas funções constitucionais e legais. Cientes disso, não causa a menor espécie saber que esse mesmo core ruptus Ministério Público, no "Caso Boate Kiss", pleiteou, diretamente ao STF, a suspensão da liminar conferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul no habeas corpus já citado alhures.


Já é de se estranhar a recepção de tal pedido pelo STF, vez se tratar de dispositivo de lei federal, devendo ser analisado, portanto e num primeiro momento, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Para além, o Presidente do STF, ao decidir o pedido, cassando a liminar concedida pelo writ, utilizou a Lei 8.437/1992, que regula a concessão de medidas cautelares contra atos do Poder Público alheias ao Direito Processual Penal, e, portanto, sem força para cassar a liminar proferida no habeas corpus.


Não fosse bastante tal absurdo, Luiz Fux justificou a sua decisão alegando riscos de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas. Além de fundamentar genericamente, sem apontar quaisquer dados que comprovassem a existência de tais perigos, não se trataria aí de um início de cumprimento de pena, como pretende o inconstitucional art. 492, I, "e", do Código de Processo Penal, mas sim caso de prisão preventiva, com esteio nos arts. 312 e 313 do mesmo Código.


Ainda insatisfeito, o Ministro, um processualista civil, completamente ignorante em matéria de ordem processual penal, chegou a abordar o grau de culpabilidade dos acusados, o que não poderia em hipótese alguma ser feito, uma vez que, para tanto, seria necessário Recurso Extraordiniário e repercussão geral da matéria.


O show de horrores não parou por aí. O Ministério Público, sabidamente transviado que é, não se satisfez com a suspensão da liminar que garantia a liberdade provisória dos condenados. Afinal de contas, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) tem de julgar o habeas corpus de forma colegiada. Assim, temendo eventual (e provável) concessão do pedido de liberdade pelo colegiado, o Ministério Público peticionou diretamente ao STF, no sentido de eventual concessão definitiva do habeas pelo TJRS não garantir a liberdade aos condenados.


O pedido, feito ontem (16/12/2021), foi recebido, processado, analisado e decidido no mesmo dia: Luiz Fux sustou os efeitos de EVENTUAL concessão de habeas corpus no "Caso Boate Kiss". Sim, Fux decidiu pro futuro, posicionando-se, de pronto, contra algo que sequer aconteceu ainda, fazendo relembrar ao Ato Institucional nº 5/1968, dos malfadados anos de chumbo do Brasil, que suspendeu a garantia do Habeas Corpus.



Mero fluxo da história do pensamento jurídico moderno


A comunidade jurídica está, em sua maioria, chocada, mormente aquela afeta e de alguma forma conectada à dogmática penal e processual penal. Eu e todos aqueles que orgulhosamente mimetizam os Grandes Mestres da corrente jurídica denominada Via Antiqua, contudo, não estamos nada impressionados.


Quem estuda o fluxo histórico do pensamento jurídico é capaz de prever o que está por vir. Não se trata de nenhum dom divinatório, mas sim da capacidade que todos temos de colocar a história sob uma perspectiva cartesiana: se diversos pontos do passado são conhecidos, a observação do presente fornece-nos mais um ponto, e, então, é possível traçar uma reta perspectiva, descortinando, assim, para que caminho a história está seguindo.


Desde a querela dos universais, a arte do Direito tem sido atacada incessantemente: Escoto e Ockham, retrocedendo à filosofia agostiniana de espezinhar a razão em nome da obediência ao Evangelho e à Igreja, pregam que a fé deve governar a razão, deixando esta prostrada como mera servidora daquela. Assim como Jeová, que se exprime com estardalhaço sobre o Sinai, dotado de ternura, ciúme e cóleras, o ser humano, feito à sua imagem e semelhança, é a única coisa que existe - não há humanidade, senão seres humanos; não há paternidade, senão pais; não há Justiça, senão a vontade de quem detém o Poder. Trata-se de uma verdadeira retomada do pensamento de Trasímaco, contemporâneo de Sócrates.


Um pouco mais tarde, em continuidade àquele "novo" modo de pensar, que enterrava São Tomás de Aquino e sua Summa, Althusius deu início a uma intransponível dicotomia jurídica: em sua Theologica Partes, ele separou o factum do jus - o Direito não nascia mais do fato, do caso concreto, mas sim da disposição de vontade daquele que detém o poder para fazer o "direito" (frise-se a letra "d" em minúscula).


A divisão criada por Althusius proporcionou o nascimento, pelas mãos de Thomas Hobbes, do positivismo jurídico: do engodo da existência de um suposto "contrato social", um pacto tácito entre os indivíduos, uma classe específica trataria de ditar o que é o Direito, utilizando-se, para isso, de fórmulas preestabelecidas. O Direito nasce antes do fato, ao contrário do que defende a Via Antiqua.


Neste ponto - e não precisamos avançar mais na história do pensamento jurídico - torna-se claro o que aconteceu com a decisão do Ministro Fux, que determinou a sustação de efeitos de um Habeas Corpus que sequer fora concedido. Ele se sente bastante confortável para agir dessa forma, pois é um discípulo dessa maldita corrente, que dissocia o Direito do Fato, e que, portanto, faz possível o Direito nascer antes do próprio Fato.


Essa é a origem do pensamento de Fux. A transgressão a toda a dogmática processual penal é mero detalhe. Aliás, quem é practicum jurídico no Brasil tem experimentado, nos últimos anos, uma vertical escalada do poderio da magistratura ante as leis e as doutrinas. Esse comportamento quase que legiferante dos Tribunais Superiores é o comportamento do Poder Judiciário como um todo: um Ministro do STJ já visitou o Palácio de Justiça de São Paulo, na Sé, para cobrar dos Desembargadores que um posicionamento jurisprudencial solidificado da Corte Superior fosse adotado pelo TJSP.


A ampla liberdade que os juízes criaram para suas atuações jurisdicionais não são a superação do positivismo jurídico, senão o próprio espírito desse mesmo positivismo. O que houve foi o mero deslocamento do poder de legislar do Legislativo para o Judiciário.


Qual é a solução? Enquanto o Direito (jus) estiver apartado dos Fatos (factum), estaremos sob o jugo do império do positivismo, traduzido pelo autoritarismo, bela barbárie jurídica, pela ausência de um fio condutor às ações dos magistrados, pela insegurança jurídica. Já se faz hora de (re)inaugurar o Direito como ele realmente é.

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