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Cassirer: O Mito, a Razão e o Direito



1. INTRODUÇÃO


O pensamento de Ernst Cassirer surgiu em um contexto histórico em que eclodia a figura de um Estado absolutista. Acadêmico do pensamento humano que era, Cassirer mergulhou nos estudos histórico-culturais, conseguindo identificar neste espeque as causas do absolutismo, propondo, ainda, uma solução para a situação.

Nessa proposição, Cassirer acabou legitimando, junto à ciência, as artes, as religiões, os mitos e a linguagem como formas de simbolizar e interpretar o mundo de maneira autônoma. Ao fazer isso, o filósofo equiparou, em grau de importância, o método científico aos outros métodos de conhecimento do mundo.

No âmbito do Direito, seus estudos são de fundamental importância para se perceber as raízes do pensamento jurídico moderno, prestando-se, ainda hoje, à reflexão acerca das origens de nossas atuais “certezas” jurídicas.



2. O PANO DE FUNDO


O final da Idade Média foi marcado por uma forte discussão filosófica, iniciada pelos franciscanos que se exsurgiam contra o Papa, pois este lhes impunha a propriedade daquilo que gozavam. Essa discussão ficou conhecida como “querela dos universais”: de um lado os racionalistas, que defendiam a existência arquetípica, tal qual proposta por Aristóteles, e de outro os nominalistas, que defendiam que a única realidade existente era o indivíduo.

Em síntese, os universalistas defendiam que cada indivíduo humano era pertencente a uma classe, chamada de “humanidade”, assim como as galinhas pertencem à classe dos galináceos, que por sua vez pertence à classe das aves, que por sua vez pertence à classe dos irracionais, que por sua vez, junto aos humanos, pertence à classe dos animais. Já os nominalistas defendiam que os universais, ou seja, esses conceitos de espécie, gênero e tipo, nada mais eram que criações humanas, sendo que o que de fato existia era cada indivíduo: a Ordem Franciscana seria pura ilusão, posto que a realidade é a existência de diversos frades franciscanos por todo o mundo, e nada além disso, e.g.[1].

Os nominalistas influenciaram sobremaneira o pensamento moderno, mormente a burguesia da época, que necessitava de direitos que lhes garantisse a propriedade e o livre comércio. Deste modo, o pensamento moderno começou a gestar aquilo que hoje é chamado de direitos subjetivos[2].

O arvorar desse pensamento culminou no Iluminismo do séc. XVIII e na Revolução Francesa no séc. XIX. Enquanto o iluminismo, através da racionalidade e da subjetividade humana, partia do presente para o futuro, a Revolução Francesa levou à redescoberta da história, seja como produção do futuro, seja como reconstrução do passado, aprofundando a divisão dos homens entre revolucionários e conservadores, ou seja, entre cultores da história como produção do futuro e cultores da história como reconstituição fiel do passado[3].

Em que pese o fundamental papel da Revolução Francesa, foi o século anterior, qual seja o século XVIII, que teve a primeira intuição desses dois sentidos da história: o primeiro, de caráter revolucionário e emancipacionista, foi elaborado pelos iluministas franceses e alemães, que, no limite, culminou no marxismo (sécs. XIX e XX); o segundo, conservador e tradicionalista, fora revelado por Giambatista Vico, e, no limite, levou à Escola Histórica alemã e aos historicistas[4].

Os historiadores, que viam a história como uma reconstituição fiel do passado, opunham-se aos filósofos, que a viam como uma ruptura com o passado e uma construção do futuro. Os filósofos pregavam que a revolução se justificava a partir de uma ideia apriorística e universal da sociedade (a partir, portanto, da razão), deixando de lado as tradições históricas dos povos. Já os historiadores defendiam que não seria a ratio humana quem organizava a história, e sim as tradições dos povos. Para tanto, os últimos pesquisaram as origens históricas das sociedades, com o intuito de demonstrar que toda instituição nascida e desenvolvida na história encontrava sua validade em si mesma, sem qualquer amparo da razão para a sua legitimidade[5].

Surge então o historicismo, que ganhou adeptos, inclusive, no universo jurídico. Jusfilósofos como Karls Savigny defendiam que o Direito, tal qual a cultura, é peculiar a cada povo, e não está ligado à razão, senão aos fatos sociais. Essa corrente jurídica ficou conhecida como ciência histórico-jurídica[6], bem como historicismo casuístico.

É nesse contexto do século XIX, em que há uma oposição à ideia de “individualidade em desenvolvimento centrado no interior do indivíduo” e a “humanidade em direção à sua realização universal final”, que Ernst Cassirer defenderá que ambos os pensamentos são codependentes, na medida em que a tese sustentada pelo romantismo do século XIX só foi possível graças às ideias do século XVIII[7].



3. ERNST CASSIRER E A CRÍTICA AO POSITIVISMO


Nascido em Breslau, na Alemanha, em 28 de julho de 1974, Ernst Cassirer estudou Direito, Filologia, Literatura, Filosofia e Matemática, tanto em Berlim quanto em Hamburgo, dedicando toda a sua vida à academia[8].

Cassirer é adepto da Escola de Marburgo, que tem como marca registrada um retorno às ideias kantianas em relação à epistemologia. Cassirer partiu daí para se dedicar, em certo ponto de sua carreira, às pesquisas relacionadas à área histórico-cultural, momento em que se aproximou mais da Escola de Baden, caracterizada por sua visão neokantista, ou seja, com maior ênfase na reflexão oriunda do conhecimento científico[9].

Em que pese Cassirer sustentar que o romantismo do séc. XIX tem suas raízes nos pensamentos do séc. XVIII, defendeu que a tentativa de tentar relacionar a linguística com as ciências naturais foi um grande equívoco: tentar explicar, ou até mesmo controlar, as manifestações das linguagens através das leis exatas é, segundo ele, um verdadeiro “andar em círculos”[10].

Há uma diferença fundamental entre os fenômenos naturais e os fenômenos históricos, e essa distinção exige uma diferença de métodos de abordagem entre eles. De fato, a natureza é composta por fenômenos que aparentemente não têm consciência, tampouco propósito, ao passo que a história é dotada de vontade e intenção humanas. Assim, a história é capaz de explicar os fenômenos humanos, e as ciências exatas a natureza (physis) [11].

A partir dessas concepções, Cassirer tece críticas veementes ao positivismo de Augusto Comte, negando peremptoriamente o enquadramento dos fenômenos humanos a um esquema eminentemente mecanicista da linguagem. Segundo Cassirer, a linguagem “não deve ser vista como um agregado de elementos heterogêneos, mas sim como expressão da ‘totalidade’ do seu ser espiritual e natural” (ele se referia, por óbvio, ao ser humano) [12].



4. ERNST CASSIRER E O DIREITO

Para a compreensão das ideias de Cassirer sobre a importância do Direito e do Estado, necessário relembrar que, na história da Filosofia ocidental, houve a passagem do pensamento mítico (mýthos) para o pensamento lógico (logos). Essa ruptura deu-se entre os séculos VII e V a.C., momento em que os filósofos pré-socráticos começaram a transcender a mitologia grega, buscando na natureza, através da racionalidade lógica humana, uma harmonia íntima capaz de organizar a physis[13].

De acordo com Cassirer, o mito e aquilo chamado de “verdadeiro saber” guerrearam entre si por muito tempo. A narrativa mítica seria o oposto da investigação filosófica, e, portanto, secundária, cega e infantil. Todavia, segundo ele, pese a histórica e milenar tentativa de rebaixar o mito, a filosofia jamais conseguiu escapar, por completo, de todos os dilemas impostos pelas infindáveis formas de manifestação da existência, de modo que a tentativa de racionalizar completamente as manifestações culturais fora uma empreitada fracassada[14].

Para Cassirer, o conhecimento do Direito principia com a noção de justiça, e esta é vista por ele como uma das principais linhas de frente da batalha da história do pensamento contra o mito. E é em Górgias, quando Platão apresenta os elementos que compõem a sua noção de ética (logos, nómos e taxis – razão, legalidade e ordem), que, em oposição à tradição mítica, se principia a noção de um Estado legal, vinculado pelo ideal de justiça, oriunda da racionalidade humana, em oposição ao Estado arbitrário, de contornos míticos[15].

Essa tradição racionalista acabou desprezando a importância da história na formação da sociedade. Deveras, os pensadores iluministas do século XVIII, a exemplo de Thomas Hobbes, traziam ao lume postulados analíticos, de caráter estritamente racional, demonstrando o imenso apreço à racionalidade humana, em detrimento da história – uma herança do histórico abandono do mito pela marcha da Filosofia pelo tempo[16].

Essa ruptura inspira sobremaneira o racionalismo político, que, como visto alhures, tomou para si os fundamentos do vitorioso nominalismo, inaugurando a oposição de direitos do indivíduo contra o Estado, assim como a razão se opõe ao mito da tradição. Esta foi a base histórico-filosófica do documento político da América do Norte, bem como da Declaração de Direitos francesa[17].

O século XIX, todavia e como já visto, guardou em seu seio a queda da construção do Estado como um ente vinculado pela ideia de justiça. Muito dessa queda se deu ao insucesso prático dos ideais iluministas, que sofreram pesadas críticas dos teóricos do romantismo alemão. Um século após o iluminismo, a batalha entre o “idealismo crítico” e o “idealismo mágico” ressurgiu no cenário do pensamento ocidental[18].

Tal batalha parece ter sido ganha pelo “idealismo mágico”: o Estado e a tradição foram alçados novamente à cadeira de elementos míticos, funcionando como entes supremos, guia dos povos, personificações jurídicas capazes de conferir a validade de ações políticas. Ainda no século XIX, Hegel elegeu o Estado como pressuposto de toda a verdade. Em outras palavras, para ele não havia verdade para além do Estado. E Hegel vai além: se o Estado detém o poder de dar significado às ações do mundo, ele é despido de qualquer componente moral, pois ele é quem inaugura a moral. Assim, tanto a história como a filosofia tornam-se prescindíveis de qualquer limitação de ordem valorativa que pudesse ser imposta ao Estado. Esse tipo de pensamento, mas não só ele, culminou na ascensão do totalitarismo do começo do século XX, ao qual o positivismo de Comte serviu mui bem.

Cassirer propõe, como solução, a reconciliação entre a razão e o mito. A premissa primogênita dessa reconciliação é a seguinte: é preciso considerar o mito em sua magnitude, compreendê-lo, conferir-lhe a medida devida. Somente assim será possível controlá-lo[19].



5. CONSIDERAÇÕES FINAIS


Assim como o século XIX deve ao século XVIII a sua existência, o logos tem no mýthos a sua razão de ser. Cassirer parece ter despertado para a importância de se superar a dualidade das ideias, e um meio para que isso aconteça é descobrir a raiz comum entre raciocínios aparentemente antagônicos.

Não se trata de buscar um arquétipo metafísico, mas sim de levar em consideração os aspectos temporais na análise de informações referentes ao pensamento humano, método este denominado de histórico. E, por ter como objeto os fenômenos humanos, tal método não pode ter a pretensão de mimetizar o método científico: este se presta a descobrir a physis, enquanto aquele se presta a compreender o logos.

Deste modo, os métodos distintos do científico são de extrema importância, pois conseguem desvelar, de várias maneiras, aquilo que a ciência não é capaz de tocar. E um desses métodos é o método jurídico, que tem como objeto a ética humana, e, por consequência, como a humanidade se organiza coletivamente.

Ao lançar um olhar histórico para o Direito, Cassirer demonstra ter descoberto a raiz das alterações referentes à relação entre o ser humano e a coletividade: o embate entre o mito e a razão parece ter sempre sido a tônica de tais mudanças. De fato, olhar para o passado com tal clarividência demonstra a assertividade do pensador. Todavia, o grande desafio está em olhar para o presente e para o futuro: onde estamos? Para onde vamos?

A ênfase no Estado como ente personalizado demonstra que o mito se faz presente no Direito atual. A presença de direitos subjetivos, limitantes do poder estatal, demonstra que a racionalidade humana também se faz presente. Todavia, o que se percebe é um recrudescimento de parte do pensamento subjetivo nos últimos anos, com a sublevação de outro: em nível mundial, o direito subjetivo “liberdade” parece se arvorar a passos largos. A “liberdade” já toma o espaço da igualdade, tendendo a arremessá-la para fora do campo jurídico. Ao mesmo tempo, aqueles que bradam pela “liberdade” defendem, estranhamente, o direito da maioria sobre a minoria, em total afronta à liberdade dessa minoria.

Em que pese os direitos subjetivos terem como base histórica o logos, a racionalidade humana que se contrapõe ao mito, que é o Estado, aqueles que bradam por “liberdade” estranhamente adotam mitos de grande importância para suas vidas, a exemplo da “pátria acima de tudo, e Deus acima de todos”. Trata-se de uma situação logicamente distópica, provavelmente fruto do historicismo relativista do século passado, que foi capaz de produzir uma era de total ruptura de senso e análise críticos, ruptura esta que transborda o campo da abstração e atinge o campo real: parece que estamos a viver em uma era de pós-verdade, onde a verdade não é aquilo que é, mas sim aquilo que cada um de nós quer que seja.

A saída da atual e distópica situação é conhecida: a fuga para o mýthos, a fuga para o logos, ou, conforme o melhor juízo de Cassirer, a fuga para ambos – a melhor, porém mais trabalhosa solução, posto que demanda esforço cognitivo para a reconstrução das barreiras entre o mito e a razão; entre a verdade e a mentira; entre a realidade e a ficção.



6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. São Paulo: Códex, 2003.


CASSIRER, Ernest. A Filosofia das formas simbólicas. São Paulo: Martins Fontes, 2001. pp. 167-168.


GASPARI, Filipe Natal de. Ernst Cassirer: O mito do Estado e o Direito. Disponível em < https://www.revistas.usp.br/humanidades/article/view/140554/135531>. Acesso em 28/07/2021.


NETMUNDI.ORG. Pré-socráticos: do mito ao logos ou a origem da filosofia. Disponível em < https://www.netmundi.org/filosofia/2014/pre-socraticos-do-mito-ao-logos/>. Acesso em 28/07/2021.


REIS, José Carlos. O Historicismo – a redescoberta da história. Disponível em <https://periodicos.ufjf.br/index.php/locus/article/view/20551/10966>. Acesso em 28/07/2021.


VÉLIZ, Alie Pérez. Aprocimación a la Didáctica del Derecho. Historicismo jurídico y métodos problémicos. Saarsbrücken: Académica Espanola, 2012.


VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.


YABIKU, Roger. Introdução à filosofia das formas simbólicas de Ernst Cassirer. Disponível em <https://jus.com.br/artigos/37457/introducao-a-filosofia-das-formas-simbolicas-de-ernst-cassirer>. Acesso em 28/07/2021.

[1] VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. [2]Ibidem. [3] REIS, José Carlos. O Historicismo – a redescoberta da história. Disponível em <https://periodicos.ufjf.br/index.php/locus/article/view/20551/10966>. Acesso em 28/07/2021. [4]Ibidem. [5]Ibidem. [6] VÉLIZ, Alie Pérez. Aprocimación a la Didáctica del Derecho. Historicismo jurídico y métodos problémicos. Saarsbrücken: Académica Espanola, 2012. [7] Cf. REIS, op. cit. [8] YABIKU, Roger. Introdução à filosofia das formas simbólicas de Ernst Cassirer. Disponível em < https://jus.com.br/artigos/37457/introducao-a-filosofia-das-formas-simbolicas-de-ernst-cassirer>. Acesso em 28/07/2021. [9]Ibidem. [10]Ib. [11] Cf. Reis, op. cit. [12] CASSIRER, Ernest. A Filosofia das formas simbólicas. São Paulo: Martins Fontes, 2001. pp. 167-168. [13] NETMUNDI.ORG. Pré-socráticos: do mito ao logos ou a origem da filosofia. Disponível em < https://www.netmundi.org/filosofia/2014/pre-socraticos-do-mito-ao-logos/>. Acesso em 28/07/2021. [14] GASPARI, Filipe Natal de. Ernst Cassirer: O mito do Estado e o Direito. Disponível em < https://www.revistas.usp.br/humanidades/article/view/140554/135531>. Acesso em 28/07/2021. [15] CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. São Paulo: Códex, 2003. [16]Idem. [17]Id. [18]Id. [19] Cf. GASPARI, op. cit.

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