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Foto do escritorCésar Maximiano

Direitos Humanos e Jusnaturalismo


O pontapé inicial deste artigo foi um exercício proposto no meu curso de pós-graduação em Problemas Fenomenológicos e Hermenêutica.


A proposta era a de discutir acerca de duas citações, sendo a primeira de Bobbio, e a segunda do material do próprio curso. Ei-los:


"(...) os direitos de cidadania são construídos historicamente, ou seja, nascidos em determinadas circunstâncias, 'caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes'.
(...) Esta luta é possível apenas no campo democrático, porém é necessário haver uma política que proteja os direitos conquistados no decorrer da história (BOBBIO, 2004, p. 5).“

Na contemporaneidade, quanto à implementação e à efetivação dos direitos humanos, percebe-se um conflito entre os valores consagrados universais e os textos legais e as práticas político-jurídicas, na sociedade há uma descrença nas possibilidades objetivas dos Direitos Humanos, ou seja, teoria e prática não se coadunam.”


Consegui detectar, dentro dessas duas premissas, a ideia de que os Direitos Humanos são mera construção humana. A partir disso, lancei-me à busca de um contraponto a tal afirmação, como pode ser visto a partir de agora.


Tanto a fala do ilustre Bobbio quanto o citado conteúdo do material didático apontam para uma ideia acerca dos Direitos Humanos: que eles não são naturais, mas sim um constructo humano. Vejamos.


Bobbio afirma que " (...) os direitos de cidadania são construídos historicamente (...) ". E o meio de construção, segundo ele, é o conjunto de " lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes ".


Na mesma esteira segue a segunda citação, para a qual a " teoria e prática não se coadunam ". Em miúdos, há um abismo entre a teoria e a prática, entre a ideia concebida e a realidade, entre a metafísica e o mundo físico.


Eis, portanto, um silogismo difícil de se combater: a afirmação de Bobbio, que, apesar de ser contrário ao seu próprio pensamento, descarta logicamente o jusnaturalismo, seguido do exemplo, que comprova a veracidade da primeira premissa.


A única maneira de se estabelecer um contraponto filosoficamente válido a tal construção lógica é a utilização do método aristotélico: há de se estabelecer a forma, e então se chegar à sua substância. A forma é de fácil delimitação: Direitos Humanos; determinar sua substância, contudo, demanda maior esforço. Tal esforço por alcançar a pedra de toque dos Direitos Humanos, penso, deve ser encetado pela verificação da história do pensamento humano.

Aos gregos antigos, os direitos não eram universais, pois o pensamento da época autorizava a distinção entre os seres humanos. Não à toa, portanto, existiam escravos na época. Ademais, só eram considerados livres, em Atenas, os homens atenienses maiores de 30 anos, excluindo-se de tais direitos mulheres, crianças, jovens e, por óbvio, os escravos. Por distinguir um ser humano do outro, os gregos antigos não podem servir de parâmetro à nossa pretendida localização da substância dos Direitos Humanos hodiernos.


Na Idade Média, sob o prisma do realismo político, o que se viu foi a condensação do poder em uma única figura, sendo ora o monarca, ora a Igreja. Todavia, sob o prisma do moralismo político, a metafísica platônica fora restituída, mormente por Tomás de Aquino, trazendo à sociedade da época o conceito de que o pensamento humano era capaz de compreender as leis naturais, verdadeiras regras universais apriori, sendo as leis do homem mera tentativa de corporificar a moral (ethós), intangível, ideal, perfeita.


Esse modo de pensar foi o pano de fundo para o surgimento do iluminismo/racionalismo, que, apesar de pretender aprofundar a negação da metafísica iniciada pelo movimento renascimentista, curiosamente mergulhou na metafísica dos direitos comuns ao homem. É nesse contexto histórico-filosófico que Francisco de Vitória (1483-1546) inaugura a ideia de direitos humanos que nutrimos até hoje.


Nascido na pequena vila baca de Vitória, Francisco tornou-se frei dominicano, estudando em profundidade Tomás de Aquino. Em sua época ocorreram as conquistas das Américas, e, como sabido, uma dizimação em massa dos povos nativos. Francisco de Vitória opôs-se fortemente à ideia de superioridade dos cristãos conquistadores sobre a população indígena não convertida, trazendo como fundamento lógico-filosófico as seguintes premissas, que, no sentir deste atrapalhado estudante, são a verdadeira substância dos direitos humanos:


"Todos os humanos compartilham a mesma natureza. E, se compartilham a mesma natureza, compartilham, também os mesmos direitos. E, se os humanos compartilham a mesma natureza, há, forçosamente, que, no início, tudo era comum a todos. Deste modo, ninguém pode ter domínio sobre o outro".(Compreensão depreendida da obra De Indis et de ivre belli, de Francisco de Victória. Disponível, em inglês, em: https://teachingamericanhistory.org/library/document/de-indis/).

Descoberta a forma (Direitos Humanos) e a sua substância (todos os humanos compartilham a mesma natureza), necessário verificar se tal conceito substancial é apriori ou mero constructo humano.


Pois, a natureza humana faz referência ao conjunto de traços que diferem o homem dos outros animais, incluindo maneiras de pensar, sentir ou agir, independentemente da influência da cultura. Deste modo, através de um simples exercício de autorreflexão, seguido de um simples exercício de empatia, que nada mais é do que expandir o resultado da autorreflexão aos seres humanos em geral, verifica-se, invariavelmente, que, independentemente da região, da cor da pele, da cultura, ninguém nasce com o intuito de morrer, em que pese ser este o destino de todos nós; ninguém nasce com o desejo premente de ser abusado e escravizado, em que pese isso ocorrer até os dias atuais.


Assemelha-se logicamente plausível, então, que exista uma substância apriori no ser humano, o que conduz à concepção jusnaturalista de tais direitos. E é, inclusive, a partir dessa substância que Francisco de Vitória lança lume à ideia aristotélica de escravidão:


"(...) O Filósofo também não quer dizer que, se alguém é por natureza de mente fraca, é permitido apreender seu patrimônio, escravizá-lo e colocá-lo à venda; mas o que ele quer dizer é que, por defeito de sua natureza, eles precisam ser governados e governados por outros e que é bom para eles estarem sujeitos a outros (...)" (Idem).

Há de se concluir, portanto, que a partilha de uma mesma natureza por todo e qualquer ser humano é a base das mais elevadas virtudes fundamentais da humanidade, tais como a compaixão, a piedade, o espírito de fraternidade e, num termo mais amplo, a justiça. Partir desse pressuposto proposto por Francisco de Vitória é conditio sine qua non para a promoção das virtudes, que levam à eudamonia platônica, ou seja, a uma vida digna a todos.

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