O equívoco que culminou no arbítrio do julgador
Bártolo de Sassoferrato nasceu em 1314 d.C., tornando-se um dos mais notáveis jurisconsultos medievais, tanto que, após sua morte, divulgou-se o adágio "nemo bonus jurista nisi bartolista", ou seja, "ninguém é bom jurista se não for barsolista".
Até o aparecimento de Bártolo, a escola dos glosadores impunha seus critérios no estudo do Direito Romano. Extremamente apegados à literalidade das regras escritas, os jurisconsultos de até então tinham como premissa básica o abandono dos seus achismos e a ferrenha acepção de um conteúdo "apriorístico" e exógeno.
Bártolo, contudo, inovou a atividade de julgar, propondo a superação do sistema metodológico da glosa, apresentando um sistema metodológico de exame crítico dos textos do corpus, a fim de se chegar à ratio legis (a razão da Lei).
A ideia de Bártolo, em tese, assemelha-se muito ao exercício proposto por Kant: partir do corpus legal e atingir a sua substância, que este chamou de fundamento apriori. E há de se dizer "em tese" porque tal estudo teórico-prático das fontes, batizado de mos italicus, a bem da verdade, nada mais era do que Bártolo, diante de um caso concreto, decidir por si mesmo, e só então pedir ao seu ajudante que fosse à biblioteca para trazer para si os livros que embasassem sua escolha.
É hialino que há, nesta atividade, verdadeira deturpação do mos italicus, ou seja, da busca epistemológica pelo télos normativo, pois uma coisa é partir do corpus legal e se chegar ao seu fundamento filosófico, e outra coisa é decidir conforme as próprias convicções, e, posteriormente, buscar amparo nas regras preexistentes.
Percebe-se, portanto, que Bártolo inaugura a atividade jurisdicional baseada na "Lebenserfahrungen der Fakticität" (utilização da experiência da vida diante da facticidade), que é o coração do realismo jurídico, que se distancia da metafísica e das visões idealistas sobre o Direito.
É de interesse notar que toda a história do pensamento jurídico é atrelada ao pensamento filosófico. Deste modo, esse sprung de Bártolo não foi algo solto em seu tempo, senão conectado a um grande embate que se dava entre os universalistas e os nominalistas, embate este batizado de "querela dos universais". Foi a partir do séc. XII (mesmo século de existência de Bártolo) que as perspectivas nominalistas passaram a ser argumentadas.
Enquanto os universalistas sustentavam a ideia grega antiga da existência dos universais, os nominalistas defendiam que as realidades são subsistentes em si mesmas, ou, no máximo, em simples conceitos mentais, derivados da compreensão subjetiva da realidade.
Em certa medida, essa "querela" subsistiu até o século passado, e até hoje subsiste, em que pese os universais serem voz fraca na atualidade, sendo que a vertente nominalista culminou na fenomenologia.
A fenomenologia de Husserl, continuada por Heidegger, amplia essa visão de realismo jurídico ao afirmar que o que importa não é o "o que são as coisas", mas sim o "como se dão as coisas". Para Heidegger, e.g., a decisão não é objetiva, e, portanto, não depende de conhecimento objetivo, senão da própria vida.
Não é à toa, portanto, que os atuais magistrados parecem agir, confortavelmente, em total desacordo às leis positivadas: o pensamento jurídico segue o pensamento filosófico. Todavia, é imperioso salientar que a atual atuação jurisdicional está baseada em um grande equívoco filosófico, e clarear tal equívoco pode ser o único caminho de salvação, a evitar o livre arbítrio decisional.
Compreender o método fenomenológico como mera percepção subjetiva dos fenômenos, sendo esta percepção per si um fenômeno igualmente, é, permissa venia, ler um livro pela metade (algo que de fato parece ser bem característico da maioria dos magistrados). E assim o é porque a fenomenologia ensina que tudo o que podemos saber do mundo e de nós mesmos resume-se aos fenômenos, que não são a verdade em si, mas sim como nós apreendemos essas informações sobre a realidade.
Deste modo, os objetos da Fenomenologia são dados imediatos, que são apreendidos em intuição pura, através da vida cotidiana. Todavia, este processo não está jogado, solto, sem uma finalidade para existir. A Fenomenologia apregoa que o exercício fenomenológico parte da apreensão dos fenômenos com o propósito de descobrir as estruturas existenciais dos atos (chamadas de noesis), bem como as entidades que correspondem a elas (chamadas de noema).
Em síntese, os fenômenos não são a realidade, mas somente a forma com que a realidade se mostra. Deste modo, a Fenomenologia presta-se, a partir da experiência, ou seja, da subjetividade, a esclarecer tanto a realidade dos fenômenos, ou noesis, como as estruturas preexistentes referentes à compreensão desses fenômenos, ou noemas.
De fato, Husserl foi um grande opositor do relativismo, posto que incapaz de alcançar qualquer rigor requerido por uma ciência genuína. Ao contrário do desvirtuamento que se vê na ciência do Direito, Husserl defendia que a metafísica deveria ser superada, e essa superação, segundo ele, só se dá através de uma comprovação fenomenológica, que é do que carece o mundo das ideias. Contudo, a comprovação fenomenológica não implode a metafísica, senão a reconecta com o mundo real, e vice-versa.
Ante o exposto, é inegável concluir que os aplicadores do Direito tiveram uma torpe formação filosófica, e que essa deficiência proporciona a manutenção de um status quo decisional autoritário, ilógico e, portanto, inadmissível.
Sob a ótica kantiana, e até mesmo fenomenológica, se levada em consideração a finalidade desta, Bártolo de Sassoferrato, tais quais os atuais operadores do Direito, que abandonam a Lógica, a Filosofia e as leis, demonstrou-se um solipsista travestido de jurista.
Tanto para aplicar quanto para superar uma norma positivada, é necessário partir dela, rumo à sua episteme (normogenética), e só então retornar para o mundo fático. Alterar o ponto de partida é dar azo à aplicação da vontade subjetiva, em detrimento do espírito das leis.
Há, ainda, uma outra alternativa correcional, que pode, ao mesmo tempo, partir da concretude diretamente à nómos, sem, contudo, ferir o espírito das leis. Este pequeno detalhe fugiu da atenção de Husserl e Heidegger, mas foi apresentada por Emanuel Levinas, e decerto será objeto de artigo futuro.
Comentários