Uma reflexão acerca do que está por trás da discussão
De um lado, um Padre, vestindo uma potente máscara para se proteger do vírus biológico que assola a humanidade, e um avental com imagem sacra para se proteger do letal vírus da intolerância, que também assola a humanidade, contudo há mais tempo que o vírus biológico; do outro lado, uma Deputada Estadual, catedrática de Direito da Universidade de São Paulo, considerada, portanto, jurista da atualidade.
Júlio Renato Lancellotti é o nome dele, e Janaína Paschoal o dela. Ele é Padre e trabalha para a Pastoral do Povo de Rua, que defende a vida e a dignidade dos seres humanos que vivem sem um teto; ela trabalha representando as ideias e vontades políticas de parte da população, que, pela sincronia de pensamentos, depositou nela seu voto de confiança, elegendo-a como representante de suas vontades.
No dia 07 de agosto de 2021, ela o criticou pelas redes sociais: "(...) a distribuição de alimentos na cracolândia só ajuda o crime (...)". No dia seguinte, emendou: "eu não ataquei ninguém, só estou propondo uma reflexão (...)", mas reforçou: "(...) alimentar no vício só estimula o ciclo vicioso (...)".
Diante da crítica, Padre Lancellotti compreendeu a profundidade do problema ao afirmar que "ela é uma deputada super bem votada no estado de São Paulo (...). Ela não pensa assim sozinha". De fato, quem ela representa é de conhecimento público, e não é um grupo de pouca monta. Mas e a origem de seus pensamentos, inclusive jurídicos, qual é? Como a própria Deputada propôs-nos a reflexão, vamos a ela!
Para quem estudou a formação do pensamento jurídico moderno, não enxerga, na fala de Janaína Paschoal, qualquer novidade.
O pensamento jurídico em voga está alicerçado nos jusfilósofos Althusius, Donellus e Grócio, que, através de falácias, desfiguraram todo o Direito Clássico, com a finalidade de, em um só passo, justificar e proteger a propriedade privada, elevando-a, primeiramente, a um direito subjetivo, e, consequentemente, ao patamar de "sagrada".
Para Althusius e Donellus, a propriedade seria fruto da vontade de Deus, que permitiu que os primeiros ocupantes fossem declarados proprietários. Para Grócio, que era calvinista, mas cujo pensamento, um pouco mais moderno, fora embebecido pelo movimento chamado de "racionalidade jurídica", a propriedade seria fruto do "jus gentium", ou consenso geral. De qualquer forma, seja a origem da propriedade divina, seja contratual, ela passou a ser considerada como praticamente intocável.
A Europa Ocidental da época (estamos falando dos sécs. XVI e XVII), mormente a burguesia, recebeu de bom grado as ideias de Grócio, que já eram efervescentes desde a franca vitória do nominalismo de Escoto e Ockham, passando pela escolástica jesuítica espanhola (Suárez). Afinal, o Direito Clássico, tomista-aristotélico, defendia o "jus quod justum est", ou seja, o Direito como a busca do Justo, a Justiça Distributiva, o "dar a cada um o que é seu". Existe sacrilégio maior que este aos herdeiros das "propriedades dadas por Deus a determinados homens"?
Assim se fundou o nosso pensamento jurídico moderno: baseado na PROPRIEDADE. Tanto é verdade que Grócio baseia todo o Direito em três axiomas básicos, que, segundo suas palavras, são:
i) abster-se religiosamente do bem alheio [o que pressupõe, per si, a propriedade], restituindo o que porventura tenhamos nas mãos, ou o proveito que disso se tenha tirado;
ii) ser obrigado a manter a palavra;
iii) ser obrigado a reparar o dano causado por culpa própria".
Propriedade, contrato e reparação de danos - eis o resumo do direito de Grócio, e, consequentemente, do nosso atual direito. E Grócio foi tão feliz em suas proposições que nós, hoje, tendemos a de fato achar naturais tais axiomas, pese terem sido forjados à base de muito estoicismo e conspurcação do Direito Natural Clássico. Para nós, por exemplo, é de fato inaceitável que um herdeiro veja parte de seu herdado patrimônio repartido por entre o povo.
Dadas essas bases fundantes do nosso pensamento jurídico, é óbvio que toda e qualquer ação que represente a distributividade, que se faz viva no Verdadeiro Direito, o Direito Natural Clássico tomista-aristotélico, tende a ser recebida com um asco mortal pelos "juristas" de hoje. E Janaína Paschoal, jurista que é, tão só reproduz politicamente essas bases jurídicas do pensamento moderno.
Portanto, eis, nesse pequeno refluxo gástrico entre as duas figuras, a representação de uma luta antiga: Padre Lancellotti defende a Justiça Distributiva, e, portanto, o realismo de Tomás de Aquino, e, no limite histórico, o posicionamento de Sócrates diante de Trasímaco, que defendia que a Justiça era transcendente ao próprio ser humano; e Janaína Paschoal exsurge-se, em resposta, defendendo a justiça comutativa, moderna, e, portanto, o nominalismo escotista, e, no limite histórico, a ideia de Trasímaco de que justiça é a vontade de quem detém o poder.
Arrimo essa minha conclusão naquilo que está guardado no próprio pronunciamento da Deputada, que aparenta estar preocupada com os direitos dos proprietários e possuidores dos imóveis arredores da Cracolândia - preocupada ao ponto de entender pernicioso doar alimento, algo básico para a subsistência, aos adictos.
Como bem salientou o Padre:
"Nosso objetivo não é distribuir comida, é defender a vida, e a gente não pode negar que a alimentação é uma dimensão da vida. Uma dimensão fundamental. Deixar para eles dor, necessidade, carência, fome, não é isso que aciona a mudança. A nossa experiência mostra que acionar a mudança passa pelo afeto, pela acolhida, pela reformulação de valores, nossos e deles"
Propriedade ou dignidade? Cada qual que tome seu partido.
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