top of page
Foto do escritorCésar Maximiano

Kant e os Imperativos

Uma reflexão sobre o caminho da virtude no Direito


Peço licença para iniciar este artigo utilizando-me da única construção que conduz a verdades lógicas, e que fora, há muito, abandonada pela maioria dos aplicadores do Direito. Pretendo iniciar, portanto, com a construção de um jocoso silogismo:


I - Basis: Kant, em seu "Fundamentos da Metafísica dos Costumes", apregoou o seguinte:

"(...) Daqui resulta que para a vontade divina e, em geral, para a vontade santa, não valham os imperativos (...)"


II - Corpus: decisões judiciais deixaram de seguir as leis.


III - Conclusioni: juízes têm vontade divina ou santa.


Em que pese tratar-se de um silogismo válido, ou seja, logicamente coerente, a conclusão a que se chega não toca, tampouco tangencia, a realidade. Explico.

Primeiramente, para compreendermos o que é um imperativo, necessário compreendermos o que é mandato.


A representação de um princípio objetivo, enquanto constritivo (limitador) para uma vontade, é um mandato da razão. Por sua vez, a fórmula deste mandato é chamada de imperativo.

Os imperativos são de duas qualidades: hipotéticos e categóricos. Os hipotéticos representam a necessidade prática de uma ação possível, com a finalidade de se conseguir algo que se queira, ou o que é possível que se queira. Exemplo é o art. 121 do Código Penal, que diz: "Matar alguém. Pena: de 06 a 20 anos de reclusão". Em que pese inexistir qualquer partícula negativa ou mandamental no tipo penal do art. 121, o Código Penal está ordenando: "Não mate ninguém!". Para além, está a dizer: "se descumprir este imperativo, sofrerá a consequência penal de reclusão, de 06 a 20 anos, a depender do caso concreto".


Evidente, portanto, que se trata de um imperativo hipotético, ou seja, de um "dever ser" para que um objetivo seja atingido, qual seja o de não ter a sua liberdade tolhida. De igual monta, o objetivo geral deste imperativo aponta para um mundo em que ninguém ceife a vida de ninguém.


Já os imperativos categóricos são aqueles que representam uma ação por si mesma, sem referência a nenhum outro fim. Em miúdos, é algo objetivamente necessário, pois está ligado diretamente com a razão, com o princípio da vontade, com aquilo que Kant denomina de princípios apodítico-práticos (apodítico, aqui, relacionado à logos, ou seja, à Lógica, à inteligência universal).


Para exemplificarmos, necessitamos fazer um exercício metafísico. Partamos, então, do mesmo art. 121 do Código Penal brasileiro. Por que refrear a vontade de matar alguém para além do temor de ser punido por isso? Um breve exercício de empatia já nos conduz ao mundo ideal: o que aconteceria se alguém quisesse me matar e de fato o fizesse? Por mais que eu tenha errado em algum ou alguns aspectos da vida em sociedade, eu mereceria a retaliação capital? Gostaria eu de ter a minha vida ceifada por outrem, sem qualquer processo racional válido envolvido?

Com tais questionamentos, chegamos à inarredável conclusão de que não é do campo do Justo matar alguém pela simples vontade de fazê-lo. Assim, partimos do entendimento vulgar, material, inscrito na lei, e atingimos a forma, o princípio de onde a lei resulta. Neste campo, tocamos, com a nossa razão, o ânimo que nutre a regra, o fundamento a priori do art. 121 do Código Penal.


Dada a explanação, volvemos ao jocoso silogismo inicial: a basis afirma que à vontade divina, santa (qual seja aquela em compasso com o fundamento a priori), os imperativos hipotéticos não têm valia, pois, como diz o antigo brocardo jurídico, "quem pode o mais, pode o menos".

Uma vontade perfeitamente boa, portanto, está amparada pelas leis objetivas, mas não consegue ser por elas constrangido, pois as leis objetivas estão contidas no seu fundamento apodítico (lógico), e não o contrário.


Assim, há três interpretações filosóficas possíveis para a ação de deixar de seguir as leis: i) ou o aplicador do Direito está em compasso com o fundamento a priori, e, assim, age sob o amparo da lei, mesmo que sem citá-la (pois ela está contida no fundamento); ii) ou o aplicador do Direito está em compasso com o fundamento a priori, e, assim, descobre que a lei está a feri-lo, afastando-se, destarte, da objetividade legal, por ser este o único caminho para a realização do justo; iii) ou o aplicador do Direito está em descompasso com o fundamento a priori, e, assim, está desamparado pela lei que materialmente o representa.


Há, ainda, uma ressalva a ser feita quanto à interpretação contida no item ii, que ocorre quando o aplicador do Direito percebe que a lei está em descompasso com os fundamentos racionais. Para afastar a lei, nestes casos, exige-se do aplicador profunda exposição analítica, com bases lógicas autossustentáveis: um verdadeiro tratado filosófico, mesmo que diminuto.


É por este motivo, então, que o silogismo outrora apresentado assemelha-se jocoso. O que mais se vê são aplicadores do Direito afastando-se das leis, mas sem qualquer amparo nos fundamentos a priori. E aqui a crítica não é só aos membros do Poder Judiciário, como de costume, mas também aos membros do Parquet e a Advogados.


Contudo, é do juiz que mais se exige esta capacidade filosófica transcendental, pois a ele é confiado o poder decisório. As partes, de regra, estão infectadas por suas próprias construções proposicionais, enquanto que o juiz, ao menos em tese, mantém-se no plano da imparcialidade. E é, inclusive, por este motivo que os membros do Ministério Público jamais deveriam ser chamados de Promotores de Justiça, pois, por não serem obrigatoriamente imparciais, tais quais os Advogados, estão, ab ovo, afastados da virtus da Justiça.


Ao juiz incapaz de realizar o caminho metafísico com maestria são dadas as leis objetivas, e nada mais. A jocosidade com a qual este artigo foi iniciado tem seu sustentáculo nas atrapalhadas atitudes dos magistrados incapazes de transcender, e que, mesmo assim, transcendem as leis, seguindo picadas totalmente opostas ao caminho dos fundamentos, à vontade divina, à vontade santa. Os resultados são desastrosos: decisões ocas, pobres, infundadas, dignas de jocosidade.

Como bem se vê, solução há para a desgraça do Direito. Resta saber se há a vontade de transcender o próprio "eu", rumo a essa solução.

3 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page