As origens doutrinárias do sentimento religioso de prazer diante da morte de um bandido.
Lázaro Barbosa de Souza nasceu em Barra dos Mendes, Bahia, em 27 de agosto de 1988. Ainda não se sabe muito sobre a sua criação, senão que foi, como milhões de brasileiros, mais um indivíduo de berço humilíssimo.
No ano de 2007, com então dezenove anos, foi preso pela polícia baiana por um duplo homicídio. Contudo, dez dias depois, conseguiu fugir. Recapturado dois anos depois, foi encontrado de posse de uma arma de fogo, e tinha contra sua pessoa, além daqueles crimes contra a vida, a suspeita de um roubo e um estupro.
Em 2013, Lázaro passou por um exame médico, e o laudo apontou-lhe problemas mentais sérios, relatando que o rapaz era impulsivo, ansioso, mentalmente desequilibrado e com “preocupações sexuais”.
Mesmo assim, em 2014 Lázaro recebeu um atestado de bom comportamento e, com isso, obteve o direito de cumprir a pena no regime semiaberto. Em 2016 ele escapou do cárcere, sendo recapturado em 2018, quando fugiu mais uma vez.
No ano de 2020, Lázaro, que estava foragido, foi acusado de invadir uma chácara e, utilizando-se de um machado, ter golpeado a cabeça de um homem. Em abril de 2021, Lázaro teria invadido uma casa em Sol Nascente, onde teria trancado o pai e o filho em um quarto, e arrastado a mãe da família até um matagal, mantendo com ela relação sexual forçada. Em maio de 2021, ele teria invadido outro imóvel rural na mesma cidade, rendido e prendido em um quarto todos os homens da casa, deixando as mulheres nuas e fazendo com que elas o servissem.
No dia 9 de junho de 2021, Lázaro invadiu um sítio na cidade de Ceilândia, onde assassinou Cláudio Vidal, de 48 anos, e seus dois filhos, de 21 e 15 anos. Nesse episódio, Lázaro levou a esposa e mãe das vítimas como refém, mas ela, antes de ser raptada, conseguiu avisar, por telefone celular, seu irmão, que, chegando ao local, ligou para a Polícia. Assim se iniciou a perseguição policial que durou vinte dias, e culminou na morte de Lázaro, que foi atingido por 38 dos 125 tiros disparados pela Polícia no cerco final.
Poderíamos discorrer sobre o fato de Lázaro ter sido diagnosticado, já em 2013, como doente mental, e mesmo assim o Estado, que lhe impunha o cárcere, não ter tido o cuidado de encaminhá-lo para um manicômio judicial. Todavia, a ineficiência estatal é mais que conhecida, e já não nos chama a atenção. O que tem de fato chamado a atenção é a sensação de saciedade pela morte do bandido, sensação esta que está, neste exato momento, servindo de gozo para uma grande massa que se identifica como cristã em nosso país.
Para quem já leu o Novo Testamento, ou passou por um catecismo minimamente sério, que é o meu caso, olha para essa celebração da morte com um pouco de espanto, pois ela parece ser contrária aos ensinamentos cristãos. Por que então parte dos que se intitulam servos de Cristo estão em júbilo pela violenta morte de Lázaro?
A primeira resposta que vem à mente é a de que são humanos, acima de cristãos, e que, portanto, em suas falhas não conseguem sentir descontentamento com a morte de um indivíduo tão periculoso à sociedade. Para além: sentem certo prazer nisso. Todavia, esse gosto por sangue e a justificação da barbárie não é só uma característica humana que se afasta dos ensinamentos cristãos: esse gosto pelo sangue está, infelizmente, impregnado na história do cristianismo. Proponho-me a encontrar o momento histórico, dentro da doutrina cristã, em que a morte e o derramamento de sangue passam a ser mais que beatificados, senão endeusados.
Muitos podem citar as Cruzadas como exemplo de derramamento de sangue em nome de Deus. É inegável que o foram, mas a ótica daquela “Guerra Santa” não se aplica à ótica do prazer quase que orgásmico que muitos cristãos de hoje, “cidadãos de bem”, sentem por cada um dos 38 tiros encerrados no corpo de Lázaro, o bandido.
É que as Cruzadas foram uma resposta inconsequente da Igreja Católica Apostólica Romana ao crescimento do islamismo. A Igreja desperdiçou exatos 196 anos (de 1095 d.C. a 1291 d.C.) de vis absoluta, ou seja, de força física, contra um crescimento que se dava pela via racional: enquanto a Igreja, aliada ao Império Romano, encastelava-se nas doutrinas do Evangelho de Cristo, o islamismo deixava a mentalidade aberta para a cultura secular, incentivando a abertura de bibliotecas que garantiam o conhecimento e a perpetuação do conhecimento dos antigos filósofos gregos. Não foi por coincidência que a Igreja Católica finalizou as cruzadas exatamente quando São Tomás de Aquino, através de sua monumental obra denominada Summa Theologicae, trazia para o seio da Igreja os conhecimentos de Aristóteles.
Apesar de as Cruzadas terem tido uma motivação político-geográfica, é inegável que se prestaram, em nome de Deus, a derramar sangue daqueles que eram considerados ímpios. Todavia, este ainda não é o cerne ao qual pretendo chegar.
Muitos podem, ainda, apontar então o “Santo Ofício”, mais conhecido como “Santa Inquisição”, como verdadeira assunção de uma cultura de barbaridades contra o ser humano, tudo em nome da Igreja e de Deus.
O “Santo Ofício” foi uma resposta da Igreja à tentativa de São Tomás de Aquino em restabelecer a razão dentro da prática da fé cristã. Contrário a Santo Agostinho, que havia pregado que a fé deveria se despir da razão, Aquino, apaixonado pela filosofia aristotélica, defendia que a razão humana seria útil para comprovar e, assim, reforçar a fé cristã. Os tomistas (seguidores da filosofia de São Tomás de Aquino) mantinham-se abertos às filosofias pagãs, utilizando-as para aguçar a intelectualidade, e, através da racionalização dos ensinamentos, traçar um paralelo entre o paganismo e as verdades trazidas pelas Sagradas Escrituras do cristianismo.
Desse movimento que tentava unir a fé e a religião (fides et ratio) surgiu a escolástica, e, quando o seio da Igreja gozava de uma efervescência filosófica ímpar, a ala conservadora lançou mão de Tribunais para julgar e punir as pessoas que se desviavam das normas de conduta e da fechada filosofia cristã.
Desse modo, o “Santo Ofício”, assim como as Cruzadas, ainda não é o ponto ao qual pretendo chegar, em que pese ter também servido como verdadeiro formador da opinião de que alguns indivíduos merecem a violência extrema como punição por seus atos.
Onde será, então, que eu quero chegar? Qual é a filosofia cristã que justifica, até hoje, o prazer e os aplausos a ações de violência extrema contra a figura de um ser humano? Eu lhes digo que é a mesma filosofia que faz o atual Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, junto de uma massa de cristãos que se autointitulam “cidadãos de bem”, parecerem contraditórios à sua fé ao defenderem o armamento da população e a morte a bandidos: o protestantismo. Foi exatamente na gênese do protestantismo que eu encontrei as bases desse gosto atual pela violência. Como já dito: a Igreja Católica cometeu absurdos em nome de Deus, mas as finalidades de outrora não se aplicam às finalidades de hoje. O protestantismo, mais especificamente o luteranismo, defendeu a vis absoluta - a violência física e a pena capital – através de uma finalidade que cabe até os dias atuais.
Martinho Lutero, apesar de desprezar o direito, revelou-se bastante provido do gosto por uma ordem severa, que se apoia na força e na violência. Para o fundador do protestantismo germânico, a ordem e a força são providenciais, ou seja, derivadas diretamente de Deus. Por este motivo é que Lutero gostava de elogiar a profissão do soldado, e até a do carrasco, assim como Jair Messias Bolsonaro e a imensa legião de cristãos que apoiam o armamento da população e se regozijam pela morte de Lázaro.
Para Lutero, “(...) a mão que carrega esse gládio [espada] e que estrangula não é a mão do homem, mas a de Deus; e não é mais o homem, mas Deus que enforca, suplicia, decapita, estrangula e faz a guerra, e tudo isso são suas obras e seus julgamentos. (...) Na profissão da guerra, não se deve considerar de que modo ele estrangula, queima, bate, captura (...)”[1].
Eis então as origens do sangrento cristianismo que habita o coração de grande parte do povo brasileiro. Como contraponto a essa filosofia, eu gostaria de humildemente tomar o exemplo de Cristo, que em uma situação pregou a sua moral, e na outra a aplicou.
No Sermão da Montanha, Jesus disse aos seus discípulos: “Tendes ouvido o que foi dito: olho por olho, e dente por dente. Digo, porém, a vós que me ouvis: Amai os vossos inimigos, fazei o bem aos que vos odeiam, bendizei aos que vos maldizem, orai pelos que vos insultam. Ao que te bate numa face, oferece-lhe também a outra; e ao que te tira a capa, não lhe negues a túnica. Dá a todo o que te pede; e ao que tira o que é teu, não lho reclames. Assim como quereis que vos façam os homens, assim fazei vós também a eles”[2].
Em dado momento, já nas horas finais de sua vida, Jesus teve a oportunidade de mostrar que a moral que ele havia esclarecido no Sermão da Montanha era aplicável na vida: o Rabi saiu com seus discípulos e atravessou o vale do Cedrom, entrando com eles em um olival. Judas, que traiu Jesus, foi para lá, levando consigo um destacamento de soldados e alguns guardas enviados pelos chefes dos sacerdotes fariseus. No momento da abordagem, Simão Pedro, que trazia consigo uma espada, desembainhou-a e feriu um dos servos do sumo-sacerdote, de nome Malco, decepando-lhe a orelha direita. Jesus, porém, ordenou a Pedro: “Guarde a espada! Acaso não haverei de beber o cálice que o Pai me deu?”[3].
Com todo o respeito ao cristianismo sangrento, que fez uma grande escola, ouso dele discordar: o abismo entre a interpretação luterana e as palavras de Cristo parece, a mim, intransponível. A morte de Lázaro foi provavelmente necessária - justificada, portanto, aos olhos dos homens e aos olhos de Deus. Todavia, da justificação à festividade pela carnificina há uma diferença que não pode ser superada.
Na minha limitada visão acerca do cristianismo, toda morte, mesmo quando necessária, deve ser lamentada, e não festejada. Na minha limitada visão, o cristianismo não é uma necro-filosofia, mas sim a filosofia do amor e da vida.
Sinto pelos males que Lázaro cometeu; sinto pela morte de Lázaro; sinto pela sociedade que se sacia com sangue, pois, quando tratamos deliberadamente um assassino de forma bárbara, deixamos de ser quem somos e passamos a ser, também, assassinos.
REFERÊNCIAS
[1] LUTERO, Martin. Weimarer Ausgabe, in Michel Villey, A Formação do Pensamento Jurídico Moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 314.
[2] Mateus 5:38 e Lucas 6:27-31, in Bíblia Sagrada.
[3] João 18: 1-11, in Bíblia Sagrada.
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