A relação entre o Direito, a Arte e a Crise Social
Conforme Aristóteles, o Direito não é uma arte, pois não tem um valor em si mesmo [1] . O Direito furta seu valor de uma virtude moral, sendo, portanto, um corolário de dessa virtude que, hoje, parece jazer esquecida: a virtude da Justiça.
Todavia, ao estudar a interpretação de Merleau-Ponty sobre as obras de Paul Cézanne, não me furto de pensar que o Direito, pese não ser uma arte, é um trabalho que a produz. Tentarei explicar como isso se dá.
Paul Cézanne foi um pintor francês pós-impressionista. Isso significa dizer que sua obra superou o realismo clássico, assim como o impressionismo, na medida em que ele não aceitava a dicotomia mundo exterior versus impressões subjetivas. Seu trabalho, então, forneceu as bases da transição do faccere artístico (séc. XIX) para a arte radicalmente inovadora do século XX.
Self-portrait, Cézanne
Ao negar referida dicotomia, Cézanne buscou uma unidade entre mundo e subjetividade, apontando-a como a verdadeira natureza primordial. Nela, na natureza primordial, não haveria separação entre pensamento e percepção: quanto mais próximos dessa natureza, mais imbricadas encontram-se essas duas faculdades. Essa sua compreensão transbordou para a sua técnica artística, produzindo obras que transcendem o pensamento e a percepção. Essa foi a leitura de Merleau-Ponty acerca de Cézanne.
Com efeito, Émile Bernard, contemporâneo de Cézanne, asseverou que este "sempre procura escapar das alternativas prontas que lhe são oferecidas - a dos sentidos ou da inteligência. Do pintor que vê e do pintor que pensa, da natureza e da composição, do primitivismo e da tradição"[2].
Utilizei-me de Cézanne para demonstrar que uma obra de arte diz muito, se não tudo, do artista, pois escancara suas experiências perceptivas da natureza, anteriores ao conhecimento sedimentado. Uma obra de arte é capaz de traduzir, em signos, todo o constructo cognitivo do artista: de suas mais profundas bases, passando pelo método de construção do conhecimento, mostrando, ainda, o grau, nível e qualidade das informações apreendidas no percurso de sua vida. Isso se dá também com o Direito.
Eu havia dito alhures que o Direito, segundo Aristóteles, não é uma arte, pois não se encerra em si mesmo. Isso é verdade, pois o Direito está para a arte assim como o ato de pintar está para a obra acabada. O ato de pintar não é a arte em si, assim como o exercício hermenêutico do Direito também não pode ser considerado artístico. O produto de ambos, contudo, é arte, seja ela de boa ou de má qualidade.
Pode haver quem defenda que o ato de pintar, assim como o exercício hermenêutico, seria um exercício artístico par excellence. Contudo, se essa atividade assim se assemelha, ou até mesmo se apresenta, o é por se deixar levar por uma ou algumas virtudes (a do Belo para o ato de pintar e a da Justiça para o ato de julgar, e.g.).
As virtudes em si não são igualmente artísticas, pois, enquanto as artes têm seu valor em si mesmas, a virtude necessita de uma ação do agente, e, para isso, é necessário que o agente esteja em condição de praticá-la. Em primeiro lugar, ele deve saber o que está fazendo, e, ato contínuo, escolher livremente a ação, que, se virtuosa, invariavelmente parte de uma disposição moral firme.
A arte, repise-se, é o resultado desse esforço, dessa atividade livre e conscientemente baseada em uma ou mais virtudes. Um quadro e uma peça jurídica são, em seu sentido mais puro, arte, pois, em que pese derivadas de um fazer humano, tão logo finalizadas atingem independência em relação aos seus criadores, uma vez que têm seu valor em si mesmas.
Há de se salientar, contudo, que essa emancipação entre a arte e o seu criador relaciona-se exclusivamente com a co-dependência, no sentido de que a obra, vez finalizada, independe de seu criador para continuar existindo (as coisas são como são). Mas subsiste, entre ambos - criador e criatura -, uma íntima e eterna relação, pois é a partir da criatura que o criador se revela: através da observação da obra é que se conhece, em profundidade, o artista.
Assim como a arte de Cézanne escancara a sua compreensão acerca do mundo e da existência, uma peça jurídica desvela as minúcias de seu produtor. E, nesta última, isso ocorre até mesmo se a peça utilizada é uma peça padrão, tal qual a obra de arte de um copista, ambas desalmadas, posto que produzidas sem o envolvimento espiritual que o esmero artístico demanda. Ainda assim, essas obras dizem muito acerca de seus artistas, pois elas revelam o afastamento do indivíduo do mundo das virtudes.
O estilo do artista traduz a sua forma de habitar o mundo, porquanto inserido nele. Através de seus gestos e de suas palavras, o artista, em uma intrínseca atividade de se afirmar diante da objetividade, solidifica o seu caráter, a sua essência. A gesticulação do indivíduo escancara seu modo de “ser-no-mundo”.
Releituras da obra Abaporu, de Tarsila do Amaral - uma única ideia guarda em si um sem fim de possibilidades.
A arte é linguagem, pois serve para comunicar. Trata-se, de modo mais profundo, de uma linguagem não só enunciativa, mas também demonstrativa, na medida em que, ao mesmo tempo em que enuncia algo, é igualmente capaz de demonstrar o processo pelo qual seu criador construiu seu próprio saber.
É que o saber só é possível com a linguagem. E não se trata de um descortinar de algo preexistente, como se a linguagem fosse uma lâmpada capaz de tornar o saber claro. Opostamente a isso, o saber apresenta-se indeterminado: há infinitas possibilidades para uma tela ou uma página em branco. O saber surge no exato momento em que o artista reúne os significantes (as mais variadas impressões psíquicas), transformando-os em significados (ou seja, em um traçado materialmente verificável, dotando os significantes de limites materiais e temporais). E a arte tem a capacidade de expor esse modo de produzir significados de seu criador – eis a sua capacidade demonstrativa.
Composição VII, Kandinsky. O objetivo do artista foi o de dotar a forma e a cor de um significado puramente espiritual, fazendo desaparecer as representações pictóricas, e, assim, eliminando toda a semelhança com o mundo físico, em uma tentativa de representar os significantes (percepções mentais) através de um significado.
E, por ser o produto do Direito uma obra de arte, nos é possível, então, através da leitura das peças jurídicas hodiernas, verificar a qualidade dos artistas-juristas. E quando temos um sistema jurídico que se assemelha a uma pinacoteca monocromática, forrada de quadros idênticos, concluímos que nossa sociedade está em escancarada crise artística; uma crise que é produto de crises mais profundas, como a crise de conhecimento, a crise de interpretação, a crise linguística e, por fim e mais lamentável, a crise moral.
REFERÊNCIAS
[1] E, II, (25).
[2] In Merleau-Ponty, Sens et non-sens, Le doute de Cézanne. Disponível em: < http://www.clicetclicetphilogram.fr/Merleau-Ponty/doutedecezanne.htm#:~:text=Dans%20ses%20dialogues%.... Acesso em 07/06/2021.
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