top of page
Foto do escritorCésar Maximiano

O Direito e a Metafísica

Uma Crítica à pseudo-superação da metafísica pela modernidade





1. O século XX e a superação da metafísica


Tugendhat afirmou que Aristóteles levou a filosofia ocidental para um beco sem saída, do qual Heidegger e sua ontologia fundamental tentam nos tirar. Mas que beco sem saída seria este? Stein responde: “este beco sem saída se chama metafísica”.

De acordo com os analíticos linguistas, que se filiam à mesma interpretação heideggeriana, a metafísica é digna das mais pesadas críticas porque ela seria uma teoria objetivadora do ser, em lugar de perceber o ser numa dimensão puramente lógico-semântica ou formal-semântica, incapaz portanto de perceber a diferença entre objeto e significado.

De acordo com Streck, o rompimento com essa tradição, no plano do direito, é extremamente difícil, mas necessária, pois crer que o Direito possui uma essência verdadeira em si mesma, à espera para ser captada pelo sujeito do conhecimento mediante um “trabalho estritamente racional de índole dedutiva, em que as normas de Direito racional, isto é, as chamadas leis da natureza, seriam apreendidas como autênticos corolários a que se acederia pelo raciocínio a partir de princípios autoevidentes estabelecidos ‘a priori’; seja captando essa essência da dinâmica da vida social (...), seja buscando-a na exegese dos textos legais”, apesar de confortável, não se ladearia da realidade.

Abolida a metafísica dos costumes, o Direito necessita(va) de uma forma de agir, e a isso se prestou – e ainda presta – a hermenêutica. Inicialmente, a hermenêutica jurídica foi a arte de alcançar a mens legis, a mens legislatoris e a correta interpretação textual dos axiomas; interpretação que visa(va) retirar da norma tudo o que nela está contido.

Não foi à toa, portanto, que Gadamer teceu severas críticas ao processo interpretativo clássico. Para o jusfilósofo, o fato de primeiro compreender, depois interpretar para só então aplicar seria causa de verdadeira cisão, que, ao fim, levaria à perda dos sentidos que tenta reproduzir. Gadamer defende a hermenêutica filosófica, na qual ocorre um Horizontenverschmelzung, ou seja, uma fusão dos horizontes para si mesmos.

Foi deste modo que o século XX foi considerado como a era da hermenêutica, atingindo o Direito no sentido de que sua teoria recepcionou, naquele período, as revoluções da linguagem, do fundamento e da ontologia, encontrando sua ancoragem na filosofia hermenêutica de Heidegger e na hermenêutica filosófica de Gadamer.

Houve uma ruptura entre sujeito e objeto, e a assunção de um verdadeiro mantra, segundo o qual seria “impossível a identificação do mundo com independência da linguagem”. Com o surgimento desses pontos de partida filosóficos, os campos da filosofia, que antes eram determinados a partir do mundo natural, puderam ser multiplicados ao infinito por meio da infinitividade humana pois, a partir de então, o ponto de partida havia deixado de ser o mundo, passando a ser o sujeito. A hermenêutica passou a ser entendida como algo que não é nem uma verdade empírica, nem uma verdade absoluta, mas sim uma verdade que se estabelece dentro das condições humanas do discurso e da linguagem, uma verdadeira consagração da finitude existencial (uma vez que o indivíduo é sabidamente finito).

Segundo Gadamer, todo o mundo que nos foi desvelado, o foi pela linguagem. As palavras, especulativas que são, tornam toda e qualquer interpretação especulativa, escapando, assim, do finalismo da metafísica, que se aproxima(ria) mais do mito do que da realidade. O campo da incerteza toma vulto, e o historicismo atinge a sua fase relativista.



2. A crítica à superação da metafísica


Já de exórdio, as modernas críticas à metafísica aristotélica parecem confundi-la com os ideais platônicos, e, o que é pior, com aquelas compreensões platônicas que foram refutadas por Aristóteles. Um indício dessa confusão está na passagem citada por Streck, em sua obra “Hermenêutica Jurídica e(m) Crise”, onde consta não ser crível que o Direito possua uma essência verdadeira em si mesma, à espera para ser captada pelo sujeito do conhecimento. Esta não é, sem sombra de dúvidas, nem a metafísica aristotélica, tampouco o modus operandi jurídico que Aristóteles descreveu em sua “Ética a Nicômaco”. Ao contrário do que se pretende fazer crer, a essência verdadeira em Aristóteles não é eterna e imutável, tampouco é alcançada por outro meio que não a observação empírica da natureza.

O texto ora em exame dá mais pistas acerca de tal confusão quando, em continuidade, descreve que essa captação de um conhecimento axiomático pelo sujeito dar-se-ia mediante um “trabalho estritamente racional de índole dedutiva, em que as normas de Direito racional, isto é, as chamadas leis da natureza, seriam apreendidas como autênticos corolários a que se acederia pelo raciocínio a partir de princípios autoevidentes estabelecidos ‘a priori’; seja captando essa essência da dinâmica da vida social (...), seja buscando-a na exegese dos textos legais”.

Oras, colocar a “captação da essência da dinâmica da vida social” e a “busca na exegese dos textos legais” sob o signo do trabalho dedutivo é um estampado erro. Se o trabalho é de índole dedutiva, como pode ele ser apreendido pela dinâmica da vida social, um exercício derradeiramente indutivo? A busca da norma pela exegese dos textos legais é que é, sim, uma atividade dedutiva. Há aí, sem sombra de dúvidas, um Missverständnis em relação à metafísica de Aristóteles. Aprofundemos.

As duras críticas que são feitas à metafísica aristotélica, quais sejam a ideia de que ela seria objetivadora do ser, deixando de percebê-lo numa dimensão lógico-semântica ou formal-semântica, são fruto, primeiramente, da vitória do nominalismo sobre o universalismo, seguida do crescimento dessa ideia de sujeito pelas filosofias luterana e calvinista, e, por fim, da adoção das filosofias helenistas, em especial o estoicismo, o ceticismo e o epicurismo, pelos pensadores iluministas – pensadores que sobrelevaram a subjetividade, filosofias que serviam perfeitamente aos anseios da burguesia da época. Tais críticas modernas, todavia, não são dignas de amparo.

Aristóteles foi um crítico severo da Teoria das Ideias de Platão – esta sim, por natureza, reduz o ser a objeto. Deste modo, Aristóteles desenvolve sua própria teoria das formas em sua obra Metafísica Z.

Logo de início, a obra destrói o arrimo das críticas modernas à sua metafísica ao trazer que “as formas não são separadas (chorista): qualquer forma é a forma de algum particular real”. Resta nítida a superação da “metafísica” de Platão por Aristóteles, que inaugura uma cadeira de conhecimento do mundo por si mesmo, ao qual denomina de metafísica por um simples motivo: esta obra sua foi escrita logo em seguida à sua obra chamada physis, ou Física, sendo, portanto, a Metafísica a “obra depois da obra ‘Física’”.

As críticas modernas parecem desprezar que, na “Física”, Aristóteles trata da matéria e da forma; na “Metafísica Z”, discute as relações entre substância, matéria, forma E SER, tratando da substância e sua predicação, ou seja, do ser em si; e em suas obras de ética (“Ética a Nicômaco” e “Ética a Eudemo”), trata de acidentes específicos do ser, que são as virtudes, imbricadas na relação do ser com o mundo.

O estudo ontológico do ser foi maestral em Aristóteles: através da observação e da reflexão, ele explicou os fenômenos e suas essências. Deste modo, a ideia crítica da modernidade, para a qual Aristóteles nos meteu num “beco sem saída chamado metafísica” (cf. Thugendat e Stein), parece ter cometido um dos dois seguintes equívocos: ou desconsiderou as obras éticas de Aristóteles; ou enxergou a capacidade do pensador em descrever o mundo e o ser como objetificação do sujeito. Se foi este último caso o ocorrido, e é o que assemelha ser, comprova-se que o pensamento moderno, na busca pela liberdade, quis se emancipar da metafísica, negando, assim, toda e qualquer realidade não só preexistente, como independente do indivíduo. Construiu-se, a partir daí, uma realidade de mundo que parte e depende do sujeito, e não o oposto.

No campo do Direito, a modernidade manifesta-se através da liberdade em se criar regras, e até realidades, a partir dos próprios achismos do indivíduo. A corrente moderna opõe-se àquilo que ela chama de Direito Natural, todavia sem saber que o Direito Natural clássico, tomista-aristotélico, não guarda nenhuma relação com a ideia de um direito engessado por “leis naturais eternas e imutáveis”. Ao contrário disso, o Direito Natural clássico tem como premissa fundamental a casuística, ou seja, é da observação do caso concreto que se ascende à regra aplicável, criando-se, num só tempo, a norma solucionadora da lide que se apresenta.

A liberdade de atuação do Direito Natural clássico é imensa, mas não supera, tampouco se aproxima, por óbvio, da liberdade de atuação dada ao operador do Direito pela modernidade: enquanto o clássico é livre para decidir nos limites do caso concreto, o moderno superou as amarras da realidade, e enxerga não só o Direito como a própria realidade a partir de si próprio, e não do mundo.

Assim, conclusivamente, o que se vê na atualidade é a oposição a uma metafísica que foi criada por seus próprios críticos, e não uma oposição à real metafísica. Trata-se de críticas quixotescas, que têm o intuito de confortar, através da justificação, o mar da completa incerteza que o historicismo relativista nos trouxe através dos ventos da modernidade.



3. Referências Bibliográficas


KENNY, Anthony. Filosofia Antiga. São Paulo: Loyola, 2011. pp. 255-257.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise – uma exploração hermenêutica do Direito. Porto Alegre: Livrarida do Advogado, 2014. pp. 259-281.

VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2009. pp. 198-560.


WZOREK, Hilton. Filosofia do Direito e Metafísica. Belo Horizonte: Annales, 2017. v. 2, n. 2.

13 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comentários


bottom of page