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Foto do escritorCésar Maximiano

O Paciente Zero

Como a História explica o autoritarismo do Judiciário


Ao ler um dos excepcionais textos do ínclito Professor Lênio Streck, de título “Sentença antes das alegações. Por que o Direito morre. Descubra”, o lente afirma estar em busca do ‘paciente zero’, ou seja, da origem da pandemia referente ao autoritarismo do Poder Judiciário, que, em todas as instâncias, vem proferindo decisões contra legem, deixando de combater importantes argumentos sustentados pela defesa, e, quando muito, fundamentando as sentenças em lógicas desconexas e pobres de juridicidade.


Lancei-me, portanto, numa busca por entre os rincões de meus limitados saberes, e, ciente da presunção que a assertiva a seguir guarda em si, acredito ter encontrado o Paciente Zero. Todavia, para que o Adão da panaceia jurídica surja para você assim como surgiu para mim, temos que perder algum tempo com uma digressão histórica da humanidade.


O ano é de 68.000 a.C., e o Homo sapiens passa por sua primeira Grande Revolução: a Revolução Cognitiva. Aquele que outrora vivia o momento presente, e se comunicava somente acerca do que estava às suas vistas, acabou por adquirir um senso de espaço e de tempo diferenciado – conseguia falar para os seus pares que no dia anterior havia visto, há alguns quilômetros dali, uma alcateia. E não só: passou a planejar ações, na tentativa de dominar o futuro. A esse dom que, ao que tudo indica, adquirimos há cerca de 70 mil anos, damos o nome de capacidade de abstração.


Alguns milhares de anos se passaram, e, em meados do ano 10.000 a.C., o ser humano viveu sua segunda Grande Revolução: a Revolução Agrícola. O Homo sapiens, que até então era eminentemente caçador-coletor, juntou-se em bandos para cultivar plantas que conhecia. Como o cultivo demandava bastante esforço, os homens daquela época construíram barracas no entorno da plantação, e, como num passe de mágica, deixamos de ser nômades.




Fig. 1. A Revolução Agrícola e o início da organização em sociedade.


A vida sedentária trouxe consigo novos desafios: como se daria a divisão da produção? De quem era a barraca construída pela coletividade? Quem cuidaria da segurança da plantação? Deste modo, o sedentarismo, aliado à capacidade de abstração de nós humanos, levou-nos à criação das sociedades.


Cada sociedade passou a criar suas regras, inclusive as regras que estabeleciam quais eram os comportamentos que se entendiam perniciosos, ou seja, criminosos. No início, as sociedades eram totêmicas, acreditavam em totens, seres inanimados que funcionavam como deidades. Deste modo, se alguém cometesse algum comportamento que era tido como mau, este alguém deveria ser punido para que o deus daquela sociedade não se voltasse contra ela. As penas eram desproporcionais: um simples furto poderia ser punido com a pena capital, tudo em nome da satisfação da divindade.


Num segundo momento, os totens deram lugar ao interesse coletivo, mas o caráter da pena ainda não havia deixado de se basear em certa ideia de atendimento aos anseios divinos. A individualidade não tinha lugar perante o coletivo, de modo que o interesse da punição, bem como a sua execução, dava-se por aquele grupo de pessoas como um todo.


Mais um passo se deu, e então o interesse individual rouba a cena do interesse coletivo, mas a pena ainda continua atendendo à divina vontade. A vítima ou seus parentes passam a ter direito de punir o autor do crime. Nesta fase, a Lei de Talião foi largamente utilizada, cuja máxima era “olho por olho, dente por dente”. Diversas leis dessa época foram imbuídas de tal espírito. Dentre elas, a mais conhecida é o Código de Hamurabi, que data de meados de 1.800 a.C.


Desse modo de punir derivou um grande problema social: imagine que um indivíduo matava outro, e que a família do falecido matava o assassino. Havia dois homens a menos naquela sociedade, que demandava mão-de-obra para se sustentar. Por conta disso, as sociedades paulatinamente deslocaram o jus puniendi (direito de punir) da esfera privada para o comando da sociedade.


Todavia, tal deslocamento não resguardou de melhor sorte a população: desde o procedimento de apuração do crime até as penas, a única descrição possível é a de barbárie.


Quanto ao procedimento de apuração, ficaram famosas na Idade Média as ordálias (ordalium em latim). Também conhecidas como juízo de Deus (judicium Dei), tratavam-se de provas judiciárias utilizadas para determinar se o acusado era inocente ou culpado.


Uma das provações utilizadas era a provação pelo fogo, onde o acusado deveria andar de três a nove passos segurando um ferro em brasa. Logo em seguida, suas mãos eram enfaixadas, e, depois de três dias, se a ferida estivesse sarando, a pessoa era considerada inocente; se apresentasse alguma inflamação, a pessoa era culpada. Tais elementos, nada lógicos, apelavam para a compreensão de que o resultado deveria ser interpretado como um juízo divino.


Outra ordália largamente utilizada era a provação pela água quente, onde o acusado tinha que mergulhar as suas mãos em um caldeirão de água fervente, seguindo o mesmo raciocínio da provação pelo fogo. A não cicatrização das queimaduras, em ambos os casos, era interpretada como um sinal de Deus de que aquele indivíduo era culpado.


Curiosamente, a Igreja Católica, no IV Concílio de Latrão, no ano de 1215, foi a primeira a proibir que o clero cooperasse com julgamentos por fogo e por água, substituindo-os pela compurgação. Nesta, o indivíduo era culpado até conseguir provar o contrário. Era-lhe dada, contudo, a oportunidade de levar ao Tribunal certo número de testemunhas, que juravam pela inocência do acusado.


As penas da época eram verdadeiro espetáculo de horrores para a população: as mais brandas eram queimaduras a ferro em brasa e a amputação dos braços; as mais severas eram a degola, a forca, o suplício na fogueira, a roda e a guilhotina. Um outro tipo de pena largamente utilizada na época medieval era a de amarrar cada membro do condenado a um cavalo, e os cavalos saíam em disparada para lados opostos, destroncando-lhe os membros.


No tocante às penas, a Igreja Católica, mesmo que indiretamente, teve relevante papel humanitário, pois o cárcere eclesiástico, que era aplicado aos clérigos rebeldes, a fim de que, enclausurados nos mosteiros, praticando a penitência, se arrependessem do mal e obtivessem a correção, foi o embrião da substituição das penas corporais e de morte pelo cárcere. Todavia, as penas estatais ainda eram bárbaras.


Mas onde está o Paciente Zero nisso tudo – devem todos, a esta altura, estarem-se perguntando. Pois bem, todo este introito foi necessário para desenhar o pano de fundo necessário ao surgimento de nosso procurado.


Muitos indivíduos opunham-se ao sistema penal da Idade Média, ou seja, opunham-se ao absolutismo do monarca. Ao rei fora confiada a condução da sociedade, mesmo que mediante infundada crença em uma representação divina. Contudo, o monarca, diante do poder, mergulhou no delírio de ser um deus na Terra, e passou a fazer tudo – absolutamente tudo – que tinha vontade.


Essa situação, denunciada por pensadores como Montesquieu, cuja obra principal foi “O Espírito das Leis”, e Cesare Bonesana (Marquês de Beccaria), cuja obra central foi a “Dos Delitos e das Penas”, foi o substrato para o surgimento do Iluminismo, um período intelectual em que a razão, ou seja, a racionalidade, deveria estar acima da fé, da religiosidade e da tradição monárquica.


Os desdobramentos do iluminismo foram vários: o método científico seria o único possível para fazer a humanidade progredir; os homens, todos, deveriam se tornar cidadãos plenos, e, como tais, deveriam ter o direito de se expressar livremente; e, por fim e ao cabo, todo e qualquer privilégio da nobreza e do clero deveriam ser eliminados, e a sociedade, assim, deveria ser reformulada a partir dessa nova concepção.


As ideias por si só, contudo, não foram capazes de modificar o milenar amálgama social que estava imposto. Por óbvio, a nobreza e o clero, por mais racionais que fossem as proposições do Iluminismo, jamais abririam mão do seu poder e dos seus privilégios.


As ideias, soltas, nada fazem no mundo; mas as ideias, se adentrarem na mente e no coração de um povo, impulsionam a sociedade à mudança pretendida. E foi o que ocorreu: a Revolução Francesa.



Fig. 2. A Revolução Francesa e a tomada do Poder pelo povo.


No espectro jurídico, o executor (Poder Executivo) passou a dever obediência estrita às leis, que, conforme Rousseau, eram a volonté générale, ou seja, a vontade do povo, que, representado, ditava como a sociedade deveria se comportar, e para onde deveria ir. A soberania fora retirada das mãos do monarca, que dela abusou, e transferida à nação, cuja voz se expressava por meio da lei. E, deste modo, de 1789 até o início do séc. XX, a grande responsabilidade do poder esteve sob as mãos do Poder Legislativo.


Houve significativos avanços naquele período: garantias penais e processuais foram asseguradas; houve a proibição de detenções arbitrárias; diversos princípios foram positivados, como o da legalidade e anterioridade da lei penal, o da presunção de inocência e o banimento das penas desumanas.


A humanidade assistiu ao surgimento de um estado legalista, para o qual quanto mais literal fosse a interpretação da lei, maior seria a segurança jurídica de um povo.


Entretanto, não demorou muito para que os responsáveis pela elaboração das leis fossem também atingidos pelo mesmo devaneio do monarca. Paradoxalmente, percebeu-se uma hiperlegalidade, ou seja, um excesso de leis, tendentes a regular todos os setores da vida humana, e, ao mesmo tempo, uma hipolegalidade, dada a péssima qualidade das leis, que eram incapazes de atender às aspirações sociais.


Essa situação acabou com o desprestígio dos legisladores, e, consequentemente, com a derrocada do estado legalista. O golpe fatal em tal modelo social deu-se após a Segunda Grande Guerra, durante os julgamentos do Tribunal de Nuremberg: questionados acerca dos motivos de não terem agido contrariamente ao Poder Executivo nazista, os juízes da época afirmavam que “só estavam cumprindo a lei”.


Em verdade, o Princípio da Legalidade foi elastecido e, deste modo, utilizado pelo nazismo para atingir com mais facilidade seus nefastos e autoritários objetivos. Os legisladores nazistas modificaram o parágrafo segundo do Código Penal Alemão, instituindo que era lícito “castigar segundo a ideia básica de uma lei penal e segundo o são sentimento do povo” – um verdadeiro passe livre para o morticínio que se deu.



Fig. 3. Milhões de judeus foram perseguidos, encarcerados e mortos.


Tal escusa dos magistrados, contudo, não foi aceita pelos julgadores do Tribunal de Exceção, porque, a um, tratava-se de uma verdadeira subversão ao próprio Princípio da Legalidade, pois, conforme nos ensinou Hungria, “se a norma penal é uma norma de conduta, rematado despropósito será exigir-se que os indivíduos se ajustem a uma norma penal... inexistente”; a dois, mostrava-se inconcebível aos juristas da época que qualquer juiz de Direito se curvasse ao império de leis que autorizavam o cárcere, o castigo e a morte de indivíduos que absolutamente nada de concreto haviam feito.


Deste modo, o Tribunal de Nuremberg paradoxalmente condenou e executou o alto escalão nazista. Digo paradoxalmente porque, sob o viés jurídico, tal tribunal de exceção fez tábula rasa da anterioridade da lei penal, e, num improvisado plano de julgamento, deu efeitos retroativos a regras que foram criadas após os fatos que estavam condenando, além de ferir de morte o princípio da territorialidade da lei penal e de estabelecer responsabilidade penal a indivíduos alheios aos fatos imputados.


Fig. 4. Tribunal de Nuremberg: o mais famoso Tribunal de Exceção da contemporaneidade.


Mas não podemos deixar de enxergar a importância de tal Tribunal para a história do Direito e da sociedade. Afinal, é a história que nos mostra que não existe o raiar de um novo dia sem o doloroso e truculento rompimento com a escuridão da madrugada.


Deste modo, a Revolução Francesa e o Tribunal de Nuremberg guardam algo em comum: seu caráter revolucionário, no sentido estrito do termo. Como um fórceps, o Novo necessita, por vezes, ferir seus próprios conceitos para conseguir assumir um lugar no mundo.


O pós-Guerra deu força para uma filosofia jurídica que já ameaçava nascer: o pós-positivismo. Para tal filosofia, o poder não estaria nas mãos de um chefe da sociedade, nem nas mãos dos legisladores. Aparentemente, os pensadores que visualizaram o pós-positivismo encontraram o ‘paciente zero’, e, portanto, acharam por bem retirar o poder das mãos humanas e transferi-lo para uma inusitada instituição, que é a Constituição de um povo.


O poder sobre uma sociedade estaria nas mãos de um documento? Sim! A abstração humana, adquirida há 70 mil anos, atingia seu ápice. A quimera era a elaboração de um documento principiológico para nortear a ação dos aplicadores do Direito.


A ideia parecia muito boa, mas se esqueceu – ou fez vistas grossas – do conteúdo humano envolvido: os aplicadores do Direito. De 1946 até os dias atuais, os juízes têm se apropriado não só da aplicação da Constituição, como também de sua interpretação, que, muitas vezes, transcende a seara interpretativa e atinge largamente o mister legiferante.


Peter Härbele, um jurista alemão, detectou a tendência autoritária dos juízes, e propôs uma sociedade aberta de intérpretes. Defendia ele que só assim haveria a consolidação da democracia.


Häberle é largamente citado pelos Tribunais Constitucionais do mundo ocidental, inclusive pelo nosso Supremo Tribunal Federal, e, de certa forma, contribuiu para a constitucionalização de institutos jurídicos importantes no país, como o amicus curiae e as sustentações realizadas por advogados, defensores, procuradores e promotores de justiça.


Em verdade, a constitucionalização do Direito retirou a soberania do legislador e direcionou-a ao juiz, que, em última instância, é quem diz o que é e o que não é o Direito. E os magistrados, tais quais os monarcas da Idade Média, os Legisladores do Iluminismo e os chefes de estado nazi-fascistas, também foram tomados pela febre do poder.


Dia desses estive eu em uma sessão de uma das Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, e fui obrigado a ouvir, calado, de um Desembargador, que o Princípio da Bagatela não existia, era uma ficção jurídica criada por garantistas, e que ele, portanto, não o reconhecia sob nenhuma hipótese. Presenciei, igualmente calado, a manutenção de uma sentença que condenou réus por terem falado ao telefone que tinham vendido drogas – as drogas? Não havia; alguém que viu as drogas serem vendidas? Não havia; alguém que viu as drogas serem guardadas para venda? Não havia; alguém que ao menos pudesse atestar a existência das tais drogas? Não havia...


Outros tantos absurdos, como o apontado pelo Prof. Lênio – a decisão fora publicada antes do final da sustentação da defesa -, acontecem todos os dias. Não são poucos os exemplos que eu, advogado criminalista neonato, já tenho para ofertar.


E o Paciente Zero, se lhe apresentou? Se ainda não, basta olhar-se no espelho.


CÉSAR MAXIMIANO DUARTE é Advogado Criminalista, Monge Zen-Budista e Membro da Comissão de Liberdade Religiosa da OAB de Sorocaba/SP.

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