Os Embargos de Declaração, ou Embargos Declaratórios, são um recurso que tem como finalidade essencial esclarecer alguma omissão ou contradição ocorrida em uma decisão judicial, seja ela proferida por um juiz, seja ela proferida por um órgão colegiado.
Regra geral, eles não são opostos para a modificação de alguma sentença, mas sim para que o juiz explique seu raciocínio jurídico ao julgar, quando este não se tornou claro o suficiente, ou quando, ainda, tal raciocínio se mostra ambíguo. Há casos, contudo, em que os embargos podem ser recebidos com efeito infringente, ou seja, podem ser capazes de alterar a decisão do juiz. São casos pontuais, onde, ao ler os embargos, o juiz ou o colegiado chega à conclusão de que o erro na decisão é insuperável, tornando-se necessária, então, a sua reforma.
Mas não vamos nos alongar muito nos detalhes dos embargos infringentes, até porque a pretensão destas linhas não é outra que demonstrar, em concreto, que os embargos de declaração têm uma vocação inata dentro da nossa realidade judicial: é através deles que detectamos os juízes míticos.
Os juízes míticos são o produto da involução do pensamento filosófico, e, por consequência, do pensamento jurídico moderno. Como o Direito abandonou seus fins e, por consequência, o próprio conceito de Justo, o que há, hoje, é, de um lado, os Advogados, técnicos legais, que estudaram, por cinco anos ou mais, regras pré-constituídas, sejam elas leis, sejam elas jurisprudências; e, de outro, autoridades jurídicas (Juízes e Promotores) que, ao que parece, adotaram na integralidade o conceito nietzschiano de Übermensch (Super-Homem), colocando-se "além do bem e do mal", acima das leis, das jurisprudências, e, o que é pior, acima do que é o Direito e do que é o Justo por definição filosófica.
Assim surgem os juízes míticos: míticos porque se colocam como verdadeiros deuses. Dotados do poder jurisdicional que o cargo lhes confere, sentem-se extremamente à vontade para decidir em oposição às leis, às jurisprudências, às teorias trazidas pelos doutrinadores (aliás, pobres coitados doutrinadores, que só alcançam uma meia dúzia de mentes que gostam da cultura). Os juízes míticos possuem uma só regra, que é a "regula trasímaca": suas próprias vontades - e, para satisfazê-las, são capazes de tudo, principal e primeiramente de conspurcar a arte do Direito.
Mas como os Embargos de Declaração são incrivelmente válidos para escancarar tais juízes excrescentes? Bem, os embargos de declaração nada mais são do que questionamentos aos juízes: se há alguma dúvida acerca de como um juiz decidiu, é pela oposição dos embargos que as partes questionam o magistrado, que deve(ria) então explicar-se. E um juiz mítico, ou seja, um deus, não deve explicações a ninguém, não é mesmo?
Inúmeros foram os casos em que eu, no meu ofício de advogado, questionei os juízes. E lhes digo que nunca, NUNCA fui respondido por qualquer deles. As alegações são quase sempre as mesmas: "os embargos de declaração não são o meio hábil para combater a decisão", ou "os embargos de declaração não se prestam a alterar a decisão" (mesmo quando não se pediu qualquer alteração, senão explicações), e, enfim, a resposta número um: "a decisão já foi clara o suficiente, de modo que rejeito os embargos". Sim, sim: o juiz diz NÃO, nós perguntamos o porquê, e ele diz PORQUE NÃO. Houve uma vez, inclusive, que um deus togado do Tribunal Regional do Trabalho de Goiás ameaçou-me: "eu já falei que não vou responder. Se embargar mais uma vez, aplicar-lhe-ei uma multa!".
É assim que os juízes míticos são escancarados. E na semana passada eu descobri mais um aqui em Sorocaba. Aliás, parece-me que as cidades de segunda entrância na carreira judicial exigem a "miticidade", permitam-me o drummonismo, dos seus magistrados. Este magistrado, que permanecera por um longo período atuando em uma Vara Cível, acabou, sabe-se lá o porquê, em uma Vara Criminal.
Sua sentença condenatória em desfavor do meu cliente fora sui generis: afirmou que o réu tentou fugir com a vítima, menor de idade, para morarem juntos, e, logo em seguida, afirmou que ele a usara como um objeto, sem demonstrar qualquer sentimento por ela, utilizando-se dessa última premissa para majorar a pena-base pela metade! Questionei acerca dessa contradição, e, por óbvio, ele não me respondeu.
Mas o pior foi que, faltando-lhe os conhecimentos básicos do Direito Penal, o juiz condenou meu cliente por dois crimes, sendo que o primeiro era um crime-meio, ou seja, conditio sine qua non para a existência do segundo crime - uma sentença que contraria a teoria finalista da ação, de Hans Welzel, adotada pelo Código Penal brasileiro.
Os embargos opostos não pediram qualquer modificação: dei ao juiz a oportunidade de explicar em qual teoria ele estava a se basear, já que não aquela adotada pelo Código Penal. E, por Deus, dou minha palavra que gostaria de uma resposta técnica, ou então filosófica, vez que acho fantástico quando um operador do Direito supera leis, jurisprudência e doutrina através da utilização da razão, ou então da arte do Direito.
Todavia, para além de ter se revelado como mítico, referido juiz teve a coragem de inovar, dizendo que os embargos tinham sido opostos com o fim meramente inquisitório. Vejamos suas próprias palavras:
(...) denota-se que tais embargos são claramente inquisitórios, de acordo com a doutrina: a parte pode invocar os preceitos legais que entender necessários para embasar seu direito, mas não tem o juiz dever de esgotar a análise de todos os argumentos invocados, podendo deter-se naqueles que considerar suficientes para fundamentar a sua decisão, sem que o julgador seja transformado numa vítima da inquisição (...)
Vejamos como este trecho escancara a "miticidade" do magistrado que o elaborou. Primeiramente, de se notar que, para tal magistrado, o juiz não tem o dever de esgotar a análise de todos os argumentos invocados. Muito distante disso, para ele o juiz pode se limitar aos argumentos que ele achar suficientes para fundamentar a sua decisão.
Acontece que a legislação brasileira, tanto no Código de Processo Civil (art. 489, § 1º, IV) quanto no Código de Processo Penal (art. 315, § 2º, IV), traz a regra de que "não será considerada motivada a decisão que não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgado".
Daí podemos concluir, de plano, que o juiz mítico em análise já se posicionou acima das leis. Mas não foi só: afinal de contas, onde já se viu questionar juízes? Oras, isso mais parece uma INQUISIÇÃO! Pobre coitado do juiz que condena sem elucidar suas razões de modo completo: É UMA VÍTIMA DA INQUISIÇÃO!
De fato, a última vez que esses deuses, esses peçonhentos deuses, responderam a questões acerca das bases de seus funestos pensamentos deve ter sido no exame oral para a aprovação ao cargo. O nervosismo deve ter sido tanto que, depois do certame, negam-se peremptoriamente a explicar as fontes dos seus devaneios.
Para concluir: que o sistema não funciona, que os juízes fazem o que bem entendem, disso não há mais qualquer dúvida. O que nos resta é unicamente o prazer de escancarar o abismo que existe entre o patamar de superioridade onde tais juízes se colocam e a pobreza de intelectualidade que os aflige. São níveis diametralmente opostos, inversamente proporcionais.
Parece-me que não é só no Poder Executivo que temos a figura de um mito ignorante.
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