O Direito Prostituído e a necessidade de Desobediência Civil.
Para John Finnis, os princípios ético-normativos precisam estar positivados por uma autoridade estatal que só é legítima se garanti-los. Ao jusfilósofo, a autoridade perde a sua legitimidade a partir do momento em que transbordar o jus natura, ou seja, o Direito Natural.
Tenho certeza que se muitos aplicadores brasileiros do Direito lessem essa assertiva eminentemente juspositivista, achariam-na antiquada, equivocada e completamente díspar do atual pensamento que rege o sistema jurídico brasileiro. De fato, num país onde a educação jurídica é limitada a "Kelsens" e "Dworkins", o resultado só pode ser o divórcio entre Direito e Moral.
É esse tecido conceitual muito bem estabelecido no país que permite aos juízes, promotores e advogados agirem de modo despudoradamente imoral. E a imoralidade que se vê na prática jurídica está tanto na eleição dos fins almejados quanto na adoção dos meios para se atingir tão indignas finalidades.
O descolamento entre trágicas decisões judiciais e a sociedade só não acontece por dois motivos: o primeiro é de ordem coercitiva, e o segundo de ordem moral.
Dada a autoridade dirigida aos magistrados, suas decisões, por mais imorais que sejam, são dotadas de coercibilidade. Isso significa dizer que o Estado, com seu poder de polícia, invariavelmente executa as decisões judiciais. Mas, para além disso, parece-me que a sociedade brasileira ainda não superou a obediência agostiniana às autoridades.
Santo Agostinho demonstra teologicamente que as leis profanas são injustas, pois têm sua finalidade encerrada em felicidades falsas, enganosas, provisórias e, portanto, desprezíveis sob o prisma religioso. Todavia, ao mesmo tempo ele professa a autoridade dessas leis injustas. "Tal qual Cristo perante Pilatos, Daniel perante Nabucodonosor" - Agostinho discorre sobre a necessidade de obediência devida a César, às leis da cidade secular.
Agostinho ainda explica que, na falta de uma justiça plena, que é a divina, uma justiça menor seria útil à ordem temporal. Abaixo da paz perfeita, então, existiriam pazes inferiores. Assim, leis e decisões contrárias à moral humana deveriam, ainda, ser cumpridas, tudo em nome da ordem e da momentânea paz social.
Um segundo motivo, mais teologal ainda, seria que o poder de fato, de que a lei e as decisões emanam, se está constituído no mundo, o está pela Providência divina. Em miúdos, tudo o que acontece é obra de Deus, seja justo ou injusto, moral ou imoral. Deste modo, para Agostinho, obedecer às leis de César seria obedecer às leis de Deus.
Esses motivos, totalmente novos às doutrinas do Direito Natural da época, trouxeram consigo toda uma atmosfera do que hoje chamamos de positivismo jurídico. E, enquanto em outros países o jusnaturalismo retoma a frente das discussões acadêmicas, posto que já se compreendeu ser o único caminho para a superação da manca ideia positivista, temos nós, neste parco e limitado Brasil, uma maioria maciça de aplicadores do Direito que se filiam a um neoconstitucionalismo aberrante; um pensamento que, na tentativa de superar o positivismo radical, acabou literalmente perdido em si mesmo, pois insiste em negar o jus natura, ou Direito Natural. Aliada a essa alienação dos aplicadores do Direito está a alienada vox populi, que, confundindo justiça com religião, é, mesmo que inconscientemente, adepta das máximas agostinianas de obediência às autoridades constituídas.
Quando nos debruçamos em devaneios acerca de como essa situação poderia ser modificada, uma coisa nos é certa: a mudança jamais virá daqueles que exercem o poder. Deste modo, é forçoso reconhecer que, enquanto a sociedade não superar a sua própria ignorância, compreendendo que leis e decisões imorais não têm legitimidade, estaremos à mercê de toda essa imoralidade jurídica, de toda essa "prostitucionalização" do Direito, que se encontra corrompido, degenerado, carcomido pela ignorância de uma classe que sequer consegue enxergá-lo.
Comments