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Foto do escritorCésar Maximiano

Síndrome de Batman

As autoridades agindo ao arrepio da lei


A Nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869), teve dezoito vetos presidenciais derrubados pelo Congresso Nacional e, consequentemente, tornou-se uma das notícias mais comentadas e discutidas das últimas semanas.


Para além dos motivos políticos, que escancaram certo desgaste entre os Poderes Executivo e Legislativo, há no ocorrido importantíssimas reflexões jurídico-sociais a serem feitas, e é neste espeque que nos manteremos ao longo deste artículo.


Aos que acompanharam, tornou-se nítido que os vetos presidenciais tinham o condão de blindar membros do Ministério Público e, principalmente, magistrados. A exemplo, um dos vetos presidenciais recaiu no dispositivo legal que punia, com pena de um a quatro anos de detenção, e multa, aquele que decretasse medida de privação da liberdade em desacordo com as hipóteses legais.


Os advogados criminalistas, mormente os do Estado de São Paulo, aplaudiram a derrubada deste veto, pois convivem diuturnamente com este exato absurdo: os juízes bandeirantes, à falta de sólidas premissas, fundamentam a prisão preventiva em um provável perigo abstrato, em total descompasso com a imposição feita pelo artigo 312 do Código de Processo Penal.


Em recente discussão pelas redes sociais com um amigo meu, que me foi colega de Academia de Polícia no curso de formação de Investigadores de Polícia do Estado de São Paulo, restou evidente a pujança do mesmo sentimento que se faz presente nos juízes que adotam a filosofia do encarceramento: um sentimento, limítrofe à raiva, que tem suas raízes na certeza de que a promoção do cárcere ou a derrubada do inimigo são um serviço à sociedade, MESMO QUE PARA ISSO SEJA NECESSÁRIO AGIR CONTRA A LEI.


É aí que entra a figura do “Homem-Morcego”, personagem criado por Bill Finger que, com o sentimento de vingança pela morte dos pais, misturado com um senso de justiça, dedica suas noites para o combate ao crime.


Batman, contudo, é também um foragido da lei, pois, para cumprir seu intento e perpetrar sua guerra contra o crime, descumpre as próprias leis de sua sociedade, e, assim, torna-se igualmente um criminoso. Batman é o perfeito arquétipo maquiavélico, pois, para ele, os fins justificam os meios.


Ao analisar o fervor, pelas redes sociais, da população média brasileira, percebo aplausos a ingerências judiciais e também policiais. O caso mais escancarado é a quantidade de arbitrariedades cometidas pelos juízes e membros do Ministério Público na famigerada “Operação Lava-Jato”. Para juristas comprometidos com o império das leis, o que houve foi um ataque frontal ao Direito; já para a massa média, cujo senso crítico reduz-se à superficialidade das informações que lhe chegam de mão beijada, bem como para todos aqueles que, mesmo com maior cultura, estão sofrendo da “Síndrome de Batman”, o que houve foram “atos heroicos de bravos cidadãos brasileiros”.


O movimento atual causa arrepio aos que estão atentos à História: dentro da marcha evolutiva da sociedade – e, consequentemente, do Direito -, um dos grandes divisores de águas foi o Iluminismo. As ideias e procedimentos antes deste movimento eram de excessiva crueldade, prodigalizando castigos corporais e a própria pena capital. O Direito, então, era basicamente um instrumento gerador de privilégios, como bem nos lembra o Prof. Cezar Roberto Bittencourt, o que permitia aos juízes, dentro do mais desmedido arbítrio, julgar os homens de acordo com sua condição social.


O movimento de reforma, capitaneado por nomes como Montesquieu, Voltaire, Rousseau, Beccaria, Howard, Bentham, Montesinos, Ladirzábal e Arenal (estes três últimos como continuadores do pensamento de seus precursores), pugnou pela censura à legislação penal vigente, defendendo as liberdades do indivíduo e enaltecendo os princípios da dignidade do ser humano. Deste modo, a proporcionalidade da pena ao crime, a consideração das circunstâncias pessoais do delinquente para a aplicação da pena e a certeza de que a crueldade só gera mais crueldade fizeram surgir o que hoje entendemos por Direito Penal lato sensu.

A ideia do recrudescimento do sistema penal é facilmente combatida, mas é discussão para artigo próprio. O cerne da questão, aqui, é o recrudescimento do sistema penal AO ARREPIO DA LEGISLAÇÃO VIGENTE.


Autoridades policiais e judiciais, bem como membros do Ministério Público, tomados pela “Sìndrome de Batman”, têm diuturnamente vestido suas capas e combatido a criminalidade como bem entendem, como se fôssemos um país sem leis. Pensam que entre suas funções está a de cobrir as lacunas legais que eles mesmos entendem existir, e, num exercício de estupro hermenêutico, fazem o que seu alvedrio lhes manda, e, posteriormente e se possível, tentam amoldar suas condutas, elastecendo dispositivos legais. No mais das vezes, contudo, nem isso fazem, pois a excrescência de seus atos perante a lei é tamanha que não há qualquer dispositivo legal elastecido que de longe justifique suas ações. Nestes casos, apelam para jurisprudências – muitas próprias -, como se juízes fossem o próprio Poder Legislativo.


Para estes que sofrem da “Síndrome de Batman”, a nova Lei de Abuso de Autoridade é um verdadeiro absurdo: “oras pois, onde já se viu eu, autoridade, ter de cumprir leis?!”. Este pensamento vem acompanhado de uma preocupação com a sociedade: “o que será da população se eu, Batman, for obrigado a cumprir as leis?! Coitados! Estarão entregues ao destino de milhões de bandidos!”. Só que “bandidos” são exatamente aqueles que descumprem as leis... Pasmemos, pois é só isso que a nova legislação do abuso de autoridade faz: pune os que descumprem as leis...


De qualquer sorte, o momento, penso, ainda é de escolha: ou abraçamos o Estado de Direito e toda a sua historicidade, e, a partir disso, detectamos nossos erros como sociedade; ou então olhamos para o passado, flertando com as arbitrariedades, e, num Rückpsrung, num salto para trás, numa involução, firmamos casamento com o falido sistema penal de outrora.

Minha escolha está feita, e minha pena está a serviço dela.


REFERÊNCIA

[1] BITTENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal: parte geral. 5ª ed. São Paulo: RT, 1999. p. 62.

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