O que a Inquisição, o Ataque aos Terreiros e a Lava-Jato têm em comum
Sob o risco de vez mais ser erroneamente rotulado, escrevo estas cambaleantes linhas, que, em verdade, são resultado de uma construção jurídica acima de qualquer ideologia política. Pretendo, portanto, através do Direito, descortinar aquilo que a inquisição, a intolerância religiosa e a Lava-Jato guardam em comum.
Nossa Constituição, corretamente adjetivada de cidadã, elevou ao nível de cláusula pétrea a liberdade religiosa, bem como a proteção aos cultos, seus locais e suas liturgias (cf. art. 5º, inciso VI da Constituição Federal da República do Brasil).
Ocorre que, 31 anos depois de seu advento, percebe-se uma crescente onda de intolerância religiosa: no dia 9 de junho deste ano, o site G1 publicou uma matéria relatando casos de violência contra locais de religião de matriz africana. Ainda conforme a matéria, as denúncias de discriminação por motivo religioso saltaram, nos últimos anos, de quinze para quase oitocentas[1].
Em toda ação violenta humana, mesmo que desligada do Estado, enxergo a existência de um processo penal, e os atuais ataques aos terreiros não se furtam desta minha percepção. É inegável que os atos de violência quase sempre são precedidos de um juízo de valor, ou seja, um processo de sopesamento entre certo e errado, seguido de uma decisão de juízo, e, por conseguinte, de uma execução da pretensa sentença particular.
Deste modo, ao observar a crescente intolerância religiosa, que se põe à margem de nosso ordenamento jurídico, não consigo me furtar de compará-la ao Tribunal da Inquisição, ou Santo Ofício, criado no século XIII para reprimir a heresia e tudo que fosse contrário ou que pudesse criar dúvidas acerca dos Mandamentos da Igreja Católica[2].
A intolerância, tanto lá quanto cá, funda-se na certeza da verdade absoluta, que só consegue se sustentar como absoluta se nutrir a própria intolerância. Assim, tudo aquilo que é contrário a esta verdade, que se põe de modo distinto de tal estrutura, é herético e perigoso, pois ataca o núcleo fundante do sistema. Esta lógica, então, autoriza o “combate a qualquer custo” da heresia e do herege, legitimando, assim, a violência, a tortura e a crueldade empregadas[3]. E aquele que cometeu o crime? Bem, o crime cometido conta com o perdão divino, pois os fins de proteção ao divino justificam-no.
Leonardo Boff, em sua obra sobre a inquisição, explica que igual raciocínio foi largamente empregado nos modelos repressivos dos regimes militares latino-americanos, onde a verdade, ao invés de sacra, pautava-se na ideologia da segurança nacional[4]. E é assim, elegendo-se um direito ou interesse metafísico, que se legitimam as mais absurdas barbáries.
Interessante notar que tanto na inquisição do século XIII quanto nos regimes militares latino-americanos e nos ataques aos terreiros, o desenvolvimento do autoritarismo segue um mesmo padrão: o abandono do ne procedat iudex ex officio e a corolária insustentabilidade do actus trium personarum, aglutinando na figura do inquisidor os misteres de acusar e julgar, apagando do processo penalizador a noção de parte, seja tal processo público ou privado, positivado ou consuetudinário, juridicamente válido ou não.
De sorte, o crescimento da intolerância religiosa e de sua violência derivada não tem, per si, o condão de representar o clima cultural em que o país está absorto, haja vista a cabível escusa de se apontar a barbárie como fruto da falta de cultura e ignorância de parcela da população.
Contudo, quando parte da classe jurídica começa a prostrar os preceitos básicos do processo penal estatal em nome de um interesse elegido como metafísico, é sinal de que jazemos mergulhados numa corrente que migra, a passos largos, para o autoritarismo. E é aqui que entra a Lava-Jato e os recentes vazamentos de troca de mensagens entre juízo e Parquet.
Abstraiamos, por um breve momento, a ilicitude do vazamento, e apeguemo-nos, por amor ao Direito, ao conteúdo daquilo que foi vazado pelo The Intercept: um magistrado aponta uma possível testemunha ao membro do Ministério Público; aquele, ao receber a negativa da colaboração da testemunha, recomenda ao Ministério Público que “oficialize” a participação da testemunha, informando nos autos que tal indicação adveio de “denúncia apócrifa”.
Abster-me-ei de tecer qualquer comentário sobre esta postura do juízo. Invoco, para tanto, as palavras do Min. Eros Grau, proferida no HC 95.009-4/SP:
“(...) desejo vigorosamente afirmar que a independência do juiz criminal impõe sua cabal desvinculação da atividade investigatória e do combate ativo ao crime, na teoria e na prática. Contra ‘bandidos’ o Estado e seus agentes atuam como se bandidos fossem, à margem da lei, fazendo mossa da Constituição. E tudo com a participação do juiz, ante a crença generalizada de que qualquer violência é legítima se praticada em decorrência de uma ordem judicial. Juízes que se pretendem versados na teoria e prática do combate ao crime, juízes que arrogam a si a responsabilidade por operações policiais transformam a Constituição em um punhado de palavras bonitas rabiscadas em um pedaço de papel sem utilidade prática, como diz FERRAJOLI (...)”
Parafraseando ainda o ilustre Professor, um juízo que participa da acusação recebe o réu da seguinte forma: “eu sei que você é culpado, mas estou à disposição para que você me prove o contrário”. Ao aproximar-se de uma das partes, o juízo perde a equidistância necessária à sua imparcialidade.
As similitudes entre a inquisição e o modus operandi da Lava-Jato não se findam na ocorrência retro-exposta. Verifiquemos as palavras do Prof. Auri Lopes Jr. acerca da estrutura do processo inquisitório, fazendo uma leitura da atualidade:
“A estrutura do processo inquisitório foi habilmente construída a partir de um conjunto de instrumentos e conceitos (falaciosos, é claro), especialmente o de ‘verdade real ou absoluta’. Na busca dessa tal ‘verdade real’, transforma-se a prisão cautelar em regra geral, pois o inquisidor precisa dispor do corpo do herege. De posse dele, para buscar a verdade real, pode lançar mão da tortura, que se for ‘bem’ utilizada conduzirá à confissão. Uma vez obtida a confissão, o inquisidor não necessita de mais nada, pois a confissão é a rainha das provas (sistema de hierarquia de provas). Sem dúvida, tudo se encaixa para bem servir o sistema” (LOPES Jr., 2013, op. cit).
Voltemo-nos ao modo com que os juízes da Lava-Jato se utilizaram e ainda se utilizam para conseguir as delações premiadas: lançam mão da prisão preventiva como uma forma de pressionar os presos a “falar o que sabem”. É uma ação que se assemelha à plea negociation (plea bargain), defendida por Sérgio Moro, atual Ministro da Justiça, e largamente utilizada na Justiça estadunidense.
Acontece que a plea bargain, ou “justiça negociada”, não é, nem ao longe, uma manifestação do modelo acusatório. Trata-se sim de uma degeneração completa do processo penal, um verdadeiro retrocesso à época inquisitorial[5]. O réu jamais deve (ria) pagar pela ineficiência estatal em comprovar a prática de delitos.
Destarte, qualquer pessoa minimamente letrada nas ciências jurídicas deveria achar estapafúrdia a atuação do ex-juiz, então Ministro da Justiça, na condução do processo em que atuou ao lado do órgão acusador. Contudo, o que se vê é o apoio de muitos advogados, promotores, juízes, bacharéis e estudantes de Direito.
Em verdade, guardo pouquíssima preocupação em relação ao futuro do famigerado “processo do triplex”: se será anulado ou não, pouco me importa! O que me eriça, repiso, é exatamente a adoção, PELA CLASSE JURÍDICA, de um objeto metafísico que justifique uma ação contrária à lei. Este é o maior símbolo de que o Zeitgeist brasileiro, ou seja, que a cultura da maioria das pessoas migra para a aceitação de uma figura totêmica, intangível e inexistente que autoriza o cometimento de ilicitudes.
Destruir terreiros torna-se justificável aos que acreditam que esta é uma prática herética, assim como descumprir as leis para “fazer justiça” e “combater a corrupção”.
Não se trata de não-aceitação do novo; não se trata de afronta à ordem natural que impõe que o passado morra para que o futuro nasça, pois não há, neste Zeitgeist verde e amarelo, nada de novo, senão um verdadeiro retrocesso a um pensamento que deveria estar sepultado junto às trevas da idade média.
Estamos adentrando em tempos sombrios.
REFERÊNCIAS
[1] https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2019/06/09/traficantes-espalhamoodio-contra-religioes-afro...
[2] LOPES Jr., Auri. Direito processual penal. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 113.
[3] Idem, p. 114.
[4] BOFF, Leonardo. Prefácio. Inquisição: um espírito que continua a existir. In: Direito processual penal, p. 114.
[5] LOPES Jr., op. cit.
Comentários